quarta-feira, abril 21, 2010

Uma opinião sobre o Plano Nacional de Direitos Humanos

VÍTIMAS DA DITADURA E COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE
Luiz Flávio Gomes. Jurista.

 O Plano Nacional de Direitos Humanos, aprovado por decreto presidencial do dia 21.12.09, está gerando muita polêmica. As opiniões controvertidas, claro, contam com forte teor ideológico. Quem tem simpatia pelas teses esquerdistas apóia o item do plano que quer criar uma Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes da ditadura brasileira (1964-1985). Os direitistas são, evidentemente, contrários. Argentina, Chile e tantos outros países já implantaram suas Comissões da Verdade (e estão punindo, inclusive penalmente, os torturadores). Há uma ADIn no STF (proposta pela OAB) que questiona a lei de anistia brasileira. A polêmica no Brasil, embora já acirrada, só está começando. Muita água ainda vai rolar debaixo dessa ponte. De qualquer maneira, a forma jurídica (legalista) brasileira, até aqui preponderante, não tem nenhuma correspondência com a forma jurídica internacional vigente. Vejamos.

Direito de acesso à jurisdição: as violações e ofensas aos direitos humanos quando emanam de uma ditadura são ofensas típicas de um terrorismo de Estado, que desaguam naturalmente no conceito dos crimes contra a humanidade. O tratamento jurídico especial desses crimes[1] tornou-se emblemático no direito internacional dos direitos humanos, sobretudo para justificar a existência de normas de caráter nitidamentesupraconstitucional (como são as normas da ONU que disciplinam a imprescritibilidade desses delitos, as que criaram o Tribunal Penal Internacional etc.).

As vítimas da ditadura (das violências perpetratas por agentes do Estado ou pessoas que atuaram em seu nome) contam com direito de acesso à jurisdição para a reparação dos danos e punição dos responsáveis pelos atos lesivos, nos termos do que proclama o art. 25 da CADH, que consagra a obrigação dos Estados de proporcionar a seus cidadãos a devida proteção judicial quando eles são violados nos seus direitos.

A jurisprudência da CIDH, de outro lado, vem enfatizando, que esse direito subsiste (e deve ser amparado) indepedentemente do agente de quem emana a ofensa, que pode ser um funcionário público ou um particular. Toda pessoa violada em seus direitos deve contar com um recurso (ou ação) de fácil uso perante os juízes e tribunais, para a reparação dos seus danos (art. 25 citado, assim como art. 63 da CADH). Uma vez exercido esse direito (de recurso ou de ação), ao órgão jurisdicional cabe emitir uma decisão fundamentada (de acordo com o direito).

Esse direito (à tutela judicial efetiva) não pode ser impedido (ou obstruído) por qualquer tipo de discriminação ou de obstáculo injustificado. Nenhuma vítima pode ser tolhida no seu direito de ação ou de recurso, no seu direito de alcançar uma sentença motivada sobre seu pedido, no direito de uma manifestação judicial sobre o mérito do pedido, no direito de sua execução, nos termos em que proferida a decisão.

No âmbito criminal (ou seja: das ofensas que se revestem das qualificações criminais em cada país), constitui legítimo interesse (direito) da vítima o de ver imposto o castigo previsto nas leis ao autor (ou autores) do fato. Esse direito vem sendo reconhecido pelos organismos internacionais, destacando-se a Comissão e a Corte interamericanas de direitos humanos (que fazem parte do nosso sistema internacional de proteção dos direitos humanos).

Premissa básica desse direito à imposição do castigo legal é o direito de toda pessoa violada (isto é, de toda vítima) de exigir a devida investigação dos fatos, da qual deve se encarregar um órgão competente, independente e imparcial, que estabeleça a existência ou não da violação, que identifique os responsáveis pela ofensa e, sendo o caso, que aplique as sanções pertinentes (de acordo com o devido processo) (cf. caso Bulacio contra a Argentina, na jurisprudência da CIDH).

Se o direito penal existe para prevenir ofensas a bens jurídicos relevantes, se suas sanções são impostas com o escopo de evitar futuras violações que possam emanar dos membros da sociedade, o castigo ao autor dos fatos a pedido (ou no interesse) da vítima constitui uma forma de respeito à sua dignidade (cf. Informe 05/96, da CIDH, caso 10.970, Raquel Martín de Mejita contra Peru). Diante do cometimento de um delito, constitui dever do Estado apurar as suas circunstâncias, identificar os seus autores e impor as sanções pertinentes (Informe 28/96, da CIDH, caso 11.297, Hernandez Lima contra Guatemala).

A apuração da verdade dos fatos, sobretudo os atribuídos a uma ditadura, embora já represente um avanço em termos de respeito aos direitos das vítimas, é absolutamente necessária, mas insuficiente, visto que a CADH exige, além disso, a punição dos responsáveis pela violação dos direitos humanos, a reparação e a indenização da vítima (CADH, art. 63.1). No caso específico dos delitos da ditadura, a instauração da investigação já constitui uma forma de reparação, embora precária. A declaração pública de reprovação dos delitos, o respeito à memória das vítimas, tudo isso é importante, mas não o bastante. O direito à verdade representa apenas uma parte do direito à Justiça, que se completa quando os autores são punidos, as vítimas indenizadas e os valores da justiça e da dignidade são restabelecidos.

A CIDH, a propósito, no caso “La Masacre de Mapiripán contra Colômbia”, deixou sublinhado que constitui dever imperativo do Estado o de remover todos os obstáculos fáticos e jurídicos que possam dificultar o esclarecimento judicial exaustivo das violações perpetradas (CIDH, 15.09.05). Esse dever de investigar as graves violações aos direitos humanos, configuradoras de verdadeiros crimes contra a humanidade, está acima de eventuais leis de anistia, de regras internas de prescrição ou mesmo de sentenças favoráveis aos seus autores (CIDH, caso citado; no mesmo sentido, CIDH, caso Velázques Rodríguez).

[1] Para um estudo profundo dos crimes contra a humanidade, v. Bassiouni, M. Cherif.Crimes against humanity in international criminal law. 2. ed. rev. The Hague: Kluwer Law International, 1999. Sobre o tema, v. também Delmas-Marty, Mireille. Três desafios para um direito mundial, cit., p. 183-188.

Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri (2001). Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP (1989). Professor de Direito Penal e Processo Penal em vários cursos de Pós-Graduação no Brasil e no exterior, dentre eles da Facultad de Derecho de la Universidad Austral, Buenos Aires, Argentina. Professor Honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de Santa Maria, Arequipa, Peru. Promotor de Justiça em São Paulo (1980-1983), Juiz de Direito em São Paulo (1983-1998) e Advogado (1999-2001). Indivudual expert observer do X Congresso da ONU, realizado em Viena de 10 a 17 de abril de 2000. Membro e Consultor da Delegação brasileira no Décimo Período de Sessões da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal da ONU, realizado em Viena, de 08 a 12 de maio de 2001. Coordenador-geral dos cursos de Especialização TeleVirtuais em convênio com a Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes - Rede LFG.


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