quarta-feira, maio 05, 2010

Ossos da coluna, por Roberto DaMatta

Ossos da coluna
Roberto DaMatta - O Globo - 05/05/2010

 Estranho país este que, num temporal, as cidades se liquefazem e, nos incêndios, os bombeiros não têm água para apagar o fogo. E tome “bolsas” de todos os tipos para todos os males. Bolsas que, entre outras coisas, legitimam e oficializam, como sabiam os ingleses do tempo da rainha Vitória, que primeiro instituíram o estado e bem-estar social, a miserável condição de pobre, tornando difícil abandoná-la e fazendo do seu recipiente um dependente de carteirinha do governo que com ele estabelece um laço clientelístico e coronelista.
Curiosa combinação do tradicional (a dívida e o favor que iria desaparecer no Brasil de Lula e do PT) com o moderno e impessoal sistema computadorizado que seria, afinal, “transparente” e “objetivo” mas que na realidade amplia o viés populista.
Com esse amálgama, não há como perder eleição.
Bizarro esse reino no qual se fala tanto em mudança, para tudo continuar na mesma. Um sistema marcado por uma agressividade sem par nas ruas; uma ausência de atitudes e comportamentos indicativos de alguma transformação real por parte das autoridades. Seria preciso passar da teoria — do papel e do decreto para o comportamento. Mas todo governante que se presa está escondido no seu palácio e só aparece (quando aparece) para, em tragédias ou comícios, reafirmar a sua impotência, ou onipotência, porque como candidato o sujeito sabe tudo, mas no governo é o que se sabe.
O colunista Merval Pereira tem razão, a psicopatologia atinge alguns políticos.
A anormalidade (daí a necessidade do recall) pode ser aplicada a uma linhagem de políticos que usam o cargo para (a) escapar de crimes cometidos no passado; (b) para “roubar & fazer” furtando incestuosamente o dinheiro público; (c) querer mais Estado no sentido stalinista e óbvio do tamanho e não da eficiência, porque sabem que, quanto maior mais complicado atribuir responsabilidade e, no Brasil, quem dirige, comanda ou chefia, assume a propriedade e, como dono, fica (pasmem!!!) isento de responsabilidade; (d) impedir a correção e até mesmo a discussão da defasagem entre lei e costume; (e) em nome do desvario populista ou do chavão fascista do “Brasil potência”, manter a estadofilia, estadolatria e estadopatia, segundo a qual o maior dever da sociedade é o de sustentar e se deixar explorar pela máquina de impostos e regulamentos do Estado que, por ser o fim de todo projeto coletivo chamado gloriosamente de esquerdista, deve ser perdulário, aristocrático, irresponsável e brutalmente ineficiente. Só agora, graças ao Plano Real (freudianamente esquecido pelo PSDB), é que começamos a ter uma noção mais precisa de que os gastos devem ser controlados porque o dinheiro não é do governo, mas da sociedade à qual ele deve servir, e não o contrário. Penso que esse é um tema a ser visto nesta eleição presidencial.
Voltemos, porém, à psicopatologia, um tema que deve ser mais explorado no Brasil e na América Latina. Quem viu ou votou em Jânio Quadros e Tenório Cavalcanti, quem ouviu um discurso do general Costa e Silva ou leu uma biografia de Pedro I, intuiu o assunto.
O carisma tem uma ligação direta com o personalismo, frequentemente alérgico a qualquer universalismo, daí para o narcisismo patológico é um pulo. O dono de um papel exclusivo, em franco contraste com os outros poderes, pois só há um prefeito,
Um governador e um presidente — por oposição a centenas de parlamentares e juízes que constituem os outros poderes —, tem muita latitude para mentir, prometer, torcer, caricaturar, distorcer e apresentar-se como vítima ou profeta salvacionista do povo. Com isso, ele conta com a inércia de uma poderosa tradição religiosa e cultural, pois os reis tinham o poder de abençoar (como fazia D. João VI no Brasil) e de curar, como revelou o historiador Marc Bloch, num livro célebre. O surto psicótico como estilo de comunicação é confundido e tomado condescendentemente como “desabafo”, “emoção”, ou “pito”. É preciso uma sociologia e uma psicologia do “poder executivo”.
Visito as páginas de um poderoso livro de viagem, “Vida no Brasil”, de Thomas Ewbank, publicado em 1856 e escrito na década anterior, no Rio de Janeiro. Lá, ele já falava dos alagamentos causados por qualquer chuvarada e, relativamente a esse “estado forte” que já está em pauta, ele acentuava surpreso (pois era um criativo inventor e mecânico entendido em hidráulica e foi comissário do departamento de patentes do governo americano) como, em decorrência da escravidão, o trabalho manual era estigmatizado no Brasil. Donde o emprego no Estado.
Ewbank observa a busca desesperada por cargos na burocracia estatal como saída para os que não eram aristocratas nem escravos ou pobres. O sistema estatal brasileiro é muito mais do que uma burocracia weberiana. Ele é um meio de resolver as contradições de uma sociedade em que o trabalho é coisa para escravo, e um modo de recriar o velho paternalismo dos barões; pois, uma vez funcionário, o futuro está garantido. No Brasil, todo branco quer ser Mané, todo preto quer ser Pelé e todo mundo quer ser funcionário público e sócio (ou dono, depende...) do Estado.
ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Skoob

BBC Brasil Atualidades

Visitantes

free counters