quinta-feira, agosto 26, 2010

Metáfora da guerra

Metáfora da guerra
ANTONIO ENGELKE

As imagens impressionam: homens disparando fuzis automáticos atrás de um caminhão da Comlurb, granadas explodindo, gritaria, caos. Depois da violência, o saldo: 1 morto, 4 feridos, 10 bandidos presos; 8 fuzis, granadas e farta munição apreendidos.
Uma moradora de São Conrado declarou: “Parecia uma guerra.” De fato, o confronto entre policiais e traficantes parece uma guerra. Afinal, há uma disputa pelo controle de territórios, com o uso de armamento pesado — granadas, metralhadoras e fuzis capazes até de derrubar helicópteros, como aconteceu recentemente.
Não é sem alguma razão, portanto, que se fala (e se lê) tanto que, no Rio de Janeiro, vivemos uma verdadeira guerra.
Mas percebam: a rigor, nós não vivemos uma guerra. Quando alguém usa o conceito de “guerra” para se referir ao que acontece no Rio, está na verdade se valendo de uma metáfora. Não há, no sentido literal do termo, uma guerra militar ou civil. Só se pode falar em “guerra civil” quando há objetivos políticos envolvidos, como por exemplo derrubar um regime, tomar o poder, fazer uma revolução.
O que há são eventuais confrontos entre a polícia e facções rivais de marginais que exploram uma atividade ilegal e lucrativa. Mas as semelhanças com uma guerra são muitas, e é em função delas que nos acostumamos a pensar no problema da segurança pública carioca como se fosse uma guerra. Uma metáfora faz exatamente isto: ela nos leva a entender e experimentar um tipo de coisa nos termos de outra. Permitam-me explicar por que isto é importante.
Metáforas não são apenas ornamentos de linguagem destinados a criar efeitos poéticos. Linguistas, filósofos e cientistas sociais afirmam que, na verdade, nossos processos cognitivos são em larga medida metafóricos. Isso significa que o modo pelo qual estruturamos o sistema de conceitos que usamos para lidar com a realidade é metafórico. Se as metáforas informam nossa percepção do mundo, seguese que elas também condicionam nossas ações no mundo. Fazem isso de maneira bastante peculiar e sutil: cada metáfora que usamos para enxergar um determinado aspecto da realidade engendra um conjunto de disposições ou atitudes correlatas. Quando percebemos a violência urbana como uma “guerra”, somos naturalmente levados a adotar uma postura e um vocabulário guerreiros: falamos em “derrotar o inimigo” (o “exército do tráfico”), em “conquistar território”, em “sacrifícios” que se fazem durante combates, e assim por diante.
Toda metáfora ilumina ou evidencia certos aspectos da experiência ao mesmo tempo em que esconde outros. A metáfora da guerra coloca em primeiro plano tiroteios, armamentos, planos de ataque, e o medo que acompanha tudo isso.
E deixa de lado outros aspectos, como as causas estruturais da criminalidade (falta de emprego, de educação etc.) e o impacto da violência na vida dos moradores das regiões mais pobres da cidade. A metáfora da guerra direciona nosso olhar para o primeiro conjunto de questões, e o desvia do segundo. Ao prover um terreno comum de percepção estruturado em torno do conflito, ela ajuda a configurar uma agenda pública centrada na demanda por mais polícia, repressão e enfrentamento.
Ajuda, assim, a despolitizar o debate sobre a violência.
Se estamos em “guerra”, então é justo aceitar que os fins justifiquem os meios, pois trata-se de matar ou morrer. Isto abre caminho para que se conceda à polícia licença para matar, que por sua vez reforça entre os bandidos a percepção de que é preciso adotar uma postura mais agressiva e violenta — e voilà, eis uma profecia que cumpre a si própria. Era este tipo de mecanismo que W. I. Thomas tinha em mente quando afirmou que “se os indivíduos definem as situações como reais, elas são reais em suas consequências”.
Nós escolhemos definir a criminalidade urbana através da metáfora da guerra. Não podemos agora nos surpreender com suas reais consequências.
Mas esta não é a única metáfora disponível.
Podemos, por exemplo, pensar na violência como um “sintoma”. Se é um “sintoma”, é porque existe uma “doença”, que por sua vez requer a pesquisa para descobrir suas “causas” e a administração de um conjunto de “tratamentos”. A metáfora médica talvez não seja a mais apropriada — sempre haverá alguém para dizer que a favela é um “câncer que deve ser extirpado” —, mas é certamente melhor do que a da guerra. Seja como for, o importante é ter a consciência de que as palavras que usamos para descrever as situações importam, e muito. Esta é uma lição a ser lembrada diariamente, sobretudo entre aqueles a quem cabe a tarefa de levar a milhões de pessoas as notícias desta “guerra” particular. Fonte: O Globo

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