sexta-feira, agosto 27, 2010

Traição e culpa

Traição e culpa
Os dois sentimentos andam juntos, de forma exagerada
Ivan Martins
Nos últimos dias, por alguma espécie de coincidência, eu tive várias conversas em que o tema principal foi traição e culpa, assim juntinhas, como se fossem uma coisa só.
Uma dessas conversas, a que mais me tocou, foi sobre uma mulher de 40 anos que pediu divórcio porque havia traído o marido e não conseguia lidar com a situação. Não disse nada a ele, não disse nada ao filho, simplesmente enlouqueceu de culpa e chamou o advogado. O casamento acabou ali, sem esclarecimentos, com grande sofrimento para todos.
Essa história me fez lembrar outra, de um sujeito que eu conheço à distância. Ele traiu a mulher com uma colega de trabalho, também casada. Mortificado, concluiu que a única solução para mitigar aquela confusão (que havia se tornado pública), era casar com a outra culpada – o que ele fez, rapidamente, numa demonstração pública de coerência e, a meu ver, de falta de juízo.
Há também o caso notório de Woody Allen, o diretor de cinema. Ele enganou a mulher de vários anos com a filha adotiva dela, enteada dele. Quando a bomba explodiu, em 1997, fez o que qualquer sujeito acuado faria: casou com a menina. Minha aposta pessoal é que a culpa dele nesse episódio é tão devastadora, o quase-incesto pesa tanto sobre seus ombros, que o casamento com Soon-Yi nunca vai acabar. Allen, que sempre foi mulherengo, desta vez vai ficar casado para sempre. Precisa provar ao mundo que não é um monstro.
A culpa, eu acho, é um dos grandes motores secretos da nossa vida social. Algumas pessoas sentem culpa desproporcional porque o ato de enganar sexualmente – a traição – ainda se reveste de uma importância despropositada na nossa sociedade. Mas seria para tanto?
Saia perguntando por aí quem já enganou e foi enganado. O porcentual é enorme, entre homens e mulheres. A traição parece ser um fato da vida, sobre o qual não temos estatísticas confiáveis. Dói, mas acontece, repetidamente. Sempre aconteceu. Parece ser uma coisa humana, embora nós tenhamos inventado um monte de regras éticas, emocionais e até policiais para evitá-la.
Outro dia, por necessidade de trabalho, li um longo perfil da candidata Dilma Roussef, escrito pelo jornalista Luiz Maklouf Carvalho. O texto conta que a candidata do PT, quando jovem, esteve envolvida em dois episódios de traição – ambos ocorridos durante a guerrilha, numa circunstância em que (imagino) as noções de lealdade deveriam ser muito exaltadas.
No primeiro episódio, ela, que era casada, envolveu-se com outro homem. Apaixonada, comunicou o fato ao marido, eles romperam e ela juntou-se ao outro. Nada disso deve ter sido fácil, mas parece ter sido simples. Meses depois, Dilma foi presa. Com ela na cadeia, o novo marido teve um caso com uma atriz muito conhecida na época, Beth Mendes. Dramático? Talvez. Imperdoável? Não. O texto relata que ela soube, ficou magoada, cobrou dele, mas continuaram ligados. Anos mais tarde, livres, voltaram a viver juntos e tiveram uma filha.
Esse caso para mim demonstra que, mesmo em situações emocionais da maior intensidade, mesmo em situações aparentemente extremas, sempre ajuda manter alguma noção de proporção - e nenhuma de propriedade.
A proporção é simples: o que a pessoa fez liquida meus sentimentos por ela ou mostra que os sentimentos dela por mim acabaram? Às vezes a resposta a essas perguntas é sim, então é hora de marchar. Às vezes a resposta é não, então se trata de sentar e conversar.
Essa atitude, claro, está baseada no pressuposto de que a propriedade sobre outro ser humano não existe. As pessoas são livres para fazer o que quiserem. Ninguém é dono de ninguém. Deixar de gostar não é crime, abandonar não é delito e mesmo enganar não é um verbo previsto no código penal. As pessoas sofrem quando são deixadas ou traídas, mas isso não lhes dá o direito de virar bicho – muito menos de cometer violência.
Está passando na TV uma campanha do Conselho Nacional de Justiça em que se diz que 10 mulheres por dia são mortas no Brasil por seus parceiros. O número me parece exagerado, mas a situação certamente não é.
Vira e mexe se vê na TV a história de um sujeito que matou a namorada ou a mulher porque ela não queria mais nada com ele. Na cabeça desses bandidos, abandono é crime de morte. Traição também. Se alguém me faz sofrer, eu mato. É monstruoso, mas há, na cultura brasileira, um sentimentalismo licencioso que “compreende” esse tipo de assassino – estava louco de amor, coitado. Coitado nada. Coitado de quem morre e de quem é agredido. Coitado de quem é vítima de um psicótico. Aos agressores e assassinos, cadeia.
Outro dia eu estava numa festa e dei de cara com um sujeito que foi coadjuvante no final de uma relação importante para mim. A mulher me deixou porque estava apaixonada por ele. Durante algum tempo, tive raiva do cara. Eu o via e ficava perturbado. Mas o que fazer? A mulher não me amava mais, a relação tinha murchado, ela foi embora. O tempo passou. No meio da festa, outro dia, eu olhei para o sujeito e percebi que não sentia mais nada em relação a tudo aquilo. Parecia tão importante na época, parecia insuperável, mas acabou, ficou para trás, não deixou rastros. A vida andou, como a vida costuma fazer - desde que a gente não se agarre às memórias com as duas mãos, desde que a gente não fique refém da traição e da culpa.
É editor-executivo de ÉPOCA

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