sexta-feira, outubro 29, 2010

As duas lápides do líder peronista

As duas lápides do líder peronista
CLÓVIS ROSSI – Folha de São Paulo
Uma mostrará a recuperação do país de sua maior crise; a outra, a manipulação da mídia e dos índices oficiais
METADE MENOS UM DA ARGENTINA PEDE "QUE SE VAYAN" OS KIRCHNER. A OUTRA METADE CHORARÁ O CADÁVER, COM A PAIXÃO COM QUE VIVE SUA HISTÓRIA
Néstor Carlos Kirchner assumiu, em 2002, uma Argentina devastada institucional, econômica e socialmente, além de animicamente derrotada, o que é perfeitamente compreensível quando se considera que o país estava mergulhado na maior crise de sua história, uma das maiores de qualquer país que não tenha passado por guerra ou catástrofe natural.
Cinco anos e meio depois, entregou uma Argentina razoavelmente recuperada, tão recuperada quanto é possível nessas tremendas circunstâncias, a ponto de ter podido eleger seu sucessor- no caso, sua sucessora, Cristina Fernández de Kirchner, também sua mulher.
Esse seria o epitáfio factualmente correto para o ex-presidente. Mas epitáfios de políticos raramente se baseiam apenas em fatos. Acabam sendo, inexoravelmente, uma mescla de fatos com emoções. Se o político morto é peronista, então, a carga emocional acaba sendo predominante.
Vale para o peronismo o que se diz da torcida do Boca Juniors, o clube mais popular do país: é metade mais um da Argentina. No caso do peronismo, metade mais um dos argentinos amam o peronismo apaixonadamente; a outra metade menos um o odeia.
O túmulo de Kirchner, portanto, terá duas lápides, a do amor e a do ódio.
Na do amor, estará escrito que a Argentina saiu do mais profundo período depressivo de sua tumultuada história econômica, para um crescimento médio de 8% ao ano; deixou para trás um desemprego avassalador, na altura de 21,5% da população economicamente ativa para a metade dessa cifra; reduziu a pobreza de inacreditáveis 49,7% para ainda altos 30%.
Estará também escrito que o governo Kirchner saiu da moratória graças a um acordo com a maior parte dos credores, quando 11 de cada 10 analistas liberais dizia que a moratória seria o último prego no caixão da moribunda Argentina.
Na lápide do ódio, aparecerá, acima de tudo, o assédio à mídia, que, embora tenha se tornado crítico na gestão de sua mulher e sucessora, é atribuído a ele, visto como poder nas sombras, não apenas como marido, mas também como presidente do Partido Justicialista, nome oficial do peronismo.
Aparecerá também, inexoravelmente, a manipulação das estatísticas, que permitem mostrar, oficialmente, uma inflação bem inferior à real.
E ainda haverá menção às suspeitas de enriquecimento ilícito, até porque enriquecimento de fato houve, e o próprio casal presidencial não o escondeu nas suas declarações de renda. Se foi ou não ilícito, é uma questão em aberto.
Para os democratas, não apenas os peronistas, pesará também o fato de os Kirchner terem lutado para recuperar a memória dos anos negros da ditadura do período 1976-1983. Mas haverá peronistas que lamentarão essa ação, porque houve peronistas dos dois lados da história dos anos de chumbo.
Como é impossível ser neutro em relação ao peronismo, a lápide preferida de cada qual será ditada pelo coração mais que pelos fatos.
O que não dá para negar é que o casal Kirchner conseguiu recuperar animicamente uma Argentina que, para derrubar o presidente eleito anterior a eles (Fernando de la Rúa, em 2001), saiu em massa às ruas gritando "que se vayan todos" (os políticos).
Hoje, pelo menos, a metade menos um da Argentina só pede "que se vayan" os Kirchner. A outra metade chorará o cadáver, não com a intensidade com que chorou a morte de Juan Domingo Perón, o criador desse multifacetado e inesgotável peronismo, mas com toda a arrebatadora paixão com que vive sua história.

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