sexta-feira, outubro 29, 2010

Interferência papal

Interferência papal
Mobilização de bispos faz Bento XVI defender participação do episcopado em questões políticas
Gerson Camarotti* -     O Globo - BRASÍLIA
 O Papa Bento XVI disse ontem, no Vaticano, durante discurso para 14 bispos da Regional Nordeste 5 (Maranhão), que o episcopado tem “o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas”. Sem mencionar diretamente a eleição presidencial de domingo no Brasil, o pontífice criticou propostas de descriminalização do aborto.
— Quando os projetos políticos contemplam, aberta ou veladamente, a descriminalização do aborto ou da eutanásia, o ideal democrático, que só é verdadeiramente tal quando reconhece e tutela a dignidade de toda pessoa humana, é atraiçoado nas suas bases — afirmou o papa.
Segundo integrantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ouvidos ontem pelo GLOBO, a posição do Papa não foi casual, mas sim fruto de uma mobilização de bispos moderados e conservadores.
O próprio discurso do Papa revela que o assunto foi provocado pelos religiosos do Brasil.
— Lendo os vossos relatórios, pude dar-me conta dos problemas de caráter religioso e pastoral, além de humano e social, com que deveis medir-vos diariamente. O quadro geral tem as suas sombras, mas tem também sinais de esperança — disse o Papa.
O aborto teve destaque na disputa entre Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB). Os ataques de religiosos à petista por sua posição declarada antes da campanha, de ser favorável à descriminalização do aborto, foram apontados por analistas como um dos fatores que impediram sua eleição no primeiro turno.
Pressionada por grupos religiosos, Dilma assinou uma carta em que se compromete a, caso eleita, não propor mudanças na legislação atual sobre aborto e sobre outros temas relacionados à família e à adoração religiosa.
— Em determinadas ocasiões, os pastores devem mesmo lembrar a todos os cidadãos o direito, que é também um dever, de usar livremente o próprio voto para a promoção do bem comum — prosseguiu Bento XVI em seu discurso, disponível no site do Vaticano.
O Papa também defendeu o ensino religioso na rede de educação pública no país e o uso de símbolos religiosos em instalações públicas: — Amados irmãos, uno a minha voz à vossa num vivo apelo a favor da educação religiosa e mais concretamente do ensino confessional e plural da religião, na escola pública do Estado. Queria ainda recordar que a presença de símbolos religiosos na vida pública é ao mesmo tempo lembrança da transcendência do homem e garantia do seu respeito.
Bento XVI lembrou o Cristo Redentor, no Rio, que, segundo ele, “representa a hospitalidade e o amor com que o Brasil sempre soube abrir seus braços a homens e mulheres perseguidos e necessitados”.
Polêmica em acordo com a Santa Sé
A mensagem do Papa Bento XVI na véspera da eleição foi intencional e serviu para referendar um posicionamento político de segmentos da CNBB. Nos bastidores, cresce o descontentamento e a desconfiança com a candidatura de Dilma. Hoje, moderados e conservadores são maioria na CNBB, isolando prelados progressistas, historicamente próximos ao PT. Esse grupo majoritário não digeriu o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH 3), lançado pelo presidente Lula em dezembro do ano passado, e que previa — depois foi retirada — a descriminalização do aborto, entre itens polêmicos.
Segundo relatos, a posição de Bento XVI também foi uma espécie de resposta indireta à notícia divulgada há cerca de três semanas de que o Palácio do Planalto cogitava rever o acordo com a Santa Sé — assinado pelo presidente Lula e o Papa Bento XVI em 2008. O acordo regulamenta aspectos jurídicos da Igreja Católica no país, incluindo isenções fiscais, liberdade de credos e ensino religioso nas escolas públicas, mas sua constitucionalidade está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal por entidades civis como a OAB.
Ao GLOBO, um prelado da CNBB lembrou que, apesar das negativas do Planalto, a simples veiculação da notícia foi interpretada no Vaticano como uma espécie de ameaça velada.
Tanto que, além da questão do aborto, Bento XVI fez questão de ressaltar em sua mensagem de ontem um dos pontos fundamentais do acordo, lembrou esse bispo, a educação religiosa nas escolas públicas.
Outro forte desconforto da CNBB que ganhou ontem apoio de Bento XVI é em relação ao PNDH 3. Um influente bispo afirmou que, apesar das modificações feitas no plano, “nada garante uma não retomada dessas questões, caso Dilma seja eleita”. O Papa tocou num dos pontos mais importantes para os católicos no plano, pedindo a presença de símbolos religiosos em locais públicos.
Recado a Hugo Chávez em 2007
As palavras do Papa aos bispos do Maranhão avalizando o dever dos religiosos de emitir juízo moral em assuntos políticos acabou reforçando a posição adotada nas últimas semanas por alguns dos mais importantes bispos brasileiros, como o cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer, o cardeal arcebispo de Aparecida, dom Raymundo Damasceno, além do próprio arcebispo dom Orani Tempesta.
Não é comum esse tipo de manifestação política da Santa Sé, mas também não chega a ser um fato inédito.
No papado de Bento XVI, a manifestação política mais contundente da Santa Sé ocorreu em 2007. Em fevereiro daquele ano, militantes próximos ao presidente Hugo Chávez tomaram de maneira violenta o Palácio Arquidiocesano de Caracas e desalojaram os funcionários. O Papa chegou a manifestar apoio ao arcebispo de Caracas, cardeal Jorge Urosa.
Mas a resposta mais contundente a esse episódio na Venezuela ocorreu em sua passagem por Aparecida, em maio daquele mesmo ano, quando Bento fez um discurso condenando os governos totalitários no continente, num recado ao governo venezuelano.
Já em Cuba, o processo foi diferente.
Lá, a Santa Sé trabalhou por uma aproximação com Fidel e Raul Castro para conseguir a liberdade religiosa para os católicos cubanos.
(*) Com agências internacionais


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