domingo, outubro 31, 2010

Tarefa inadiável

Tarefa inadiável
Merval Pereira - O GLOBO - 31/10/10
O presidente eleito hoje terá pela frente como uma de suas tarefas inevitáveis desarmar os espíritos, radicalizados nesta eleição como há muito não se via neste país, mais precisamente desde a eleição de 1989, que colocou frente a frente um Lula e um Collor no grau mais acentuado de suas radicalizações políticas.
No processo eleitoral que se encerra hoje, quem radicalizou a ação política foi o próprio presidente Lula, provocando um retrocesso que custará caro ao amadurecimento institucional do país, se o próximo presidente não tiver noção do que aconteceu e não se dispuser a reverter essa tendência.
O país que vinha desde a redemocratização num processo de aperfeiçoamento de suas instituições viu a máquina do Estado, aparelhada politicamente como nunca antes, ser usada de maneira escancarada para viabilizar a eleição de uma candidata cujo surgimento no cenário político nacional deve-se única e exclusivamente à vontade de um homem que se considera o próprio "pai da pátria".
O país que vinha mantendo um processo continuado de equilíbrio das contas públicas viu o governo abandonar qualquer cautela, se não por pudor, pelo menos por prudência, e se jogar num gasto público crescente e descontrolado, na mais pura demagogia.
Utilizando empresas públicas emblemáticas como a Petrobras não apenas como símbolo de uma fantasiosa campanha contra as privatizações, mas também como máquina política, a ponto de antecipar a exploração de um campo de petróleo do pré-sal, provocando a desvalorização do patrimônio de seus acionistas - o maior dos quais é a própria União.
Os avanços conquistados nos últimos anos no governo Lula, como a redução da pobreza e da desigualdade, com a distribuição de renda através de programas sociais, e a inclusão de uma vasta camada da população no mercado consumidor, ao mesmo tempo sinalizam as deficiências que ainda temos, como a baixa qualidade da educação e a falta de infraestrutura, de que a melhor definição é a constatação de que quase 100% dos lares brasileiros têm acesso à energia e à televisão, mas apenas 50% têm rede de esgoto.
O aumento da demanda interna, se por um lado ajuda a manter o crescimento da economia, por outro força os limites desse mesmo processo, com o risco de gerar inflação.
Dois temas dessa campanha informam ao estrangeiro que chega ao país o atraso de nossa sociedade: as privatizações como ícone de um nacionalismo ultrapassado, que ainda vê o Estado como o provedor da segurança individual sem se importar com a ineficiência de seus serviços, mesmo com uma das maiores cargas tributárias do mundo; e a descriminalização do aborto, já aprovada em países tão ou mais religiosos que o Brasil, como Portugal e Itália.
Se as pesquisas de opinião, ao contrário do primeiro turno, estiverem certas, o mais provável é que a candidata oficial Dilma Rousseff seja eleita hoje, mas a distância que a separa de seu oponente José Serra, do PSDB, é pequena para padrões lulísticos de popularidade, o que demonstra que, se não tivesse perdido as estribeiras institucionais, o presidente Lula não conseguiria obter o que ele acredita ser - e a grande maioria dos eleitores de Dilma também - o seu terceiro mandato consecutivo por interposta pessoa.
Durante esta campanha ficou claro o contraste entre um país que exibe orgulho por certas instituições próprias de democracias avançadas, como a possibilidade de alternância no poder na mais absoluta normalidade, e a livre manifestação de opiniões, com sinais de atraso evidentes, com destaque para o fato de que, paradoxalmente, o presidente da República utilizou todos os meios a seu alcance, legais e ilegais, justamente para tentar impedir uma eventual alternância no poder.
E comandou uma campanha contra a liberdade de expressão que tem nas diversas iniciativas governamentais e partidárias a correspondência de sua retórica palanqueira.
Vencendo a candidata oficial Dilma Rousseff, veremos se a busca do equilíbrio da economia voltará a vigorar, ou se o novo governo será a continuação da política econômica posta em prática a partir do segundo mandato do presidente Lula, com um papel acentuado do governo na economia.
Mesmo recebendo um Congresso onde cerca de 70% dos eleitos fazem teoricamente parte dos partidos da base parlamentar do governo, um futuro governo Dilma dependerá principalmente do PMDB, cujo presidente é o seu companheiro de chapa Michel Temer.
Ele será o responsável, se não formal, certamente na prática, pela negociação com o Congresso. A disputa entre o PMDB e o PT por espaços de poder terá um problema adicional: Dilma não é Lula, falta a ela a capacidade de negociação de seu tutor, e sua maneira rude de comandar não parece ser o melhor caminho para se chegar a um acordo parlamentar.
Ao mesmo tempo, a oposição saiu da eleição menor na sua representação parlamentar, mas mais unida e com trunfos importantes, como o domínio dos principais colégios eleitorais, São Paulo e Minas, e o comando dos estados do Sul como Paraná e Santa Catarina, este a ser governado pelo DEM.
Cravou, também com o DEM, sua estaca no Nordeste, com vitória no Rio Grande do Norte; e no Norte, com o governo tucano de Tocantins; e hoje pode confirmar os governos do Pará, de Alagoas e de Goiás.
Tudo indica que mesmo com a confirmação da vitória de Dilma, as urnas mostrarão um país dividido, com a oposição ampliando sua votação nesse segundo turno.
E os tucanos ainda sonham com uma reviravolta que, se acontecer, ficará na história das eleições brasileiras como a vitória de Harry Truman sobre Thomas Dewey, em 1948, quando o jornal "Chicago Daily Tribune" garantiu na sua manchete na noite das eleições, com base em projeções de pesquisa de opinião, "Dewey derrota Truman".
Truman não só ganhou as eleições como posou sorridente com o jornal nas mãos, numa foto que se tornou famosa.

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