segunda-feira, novembro 08, 2010

Herói da resistência

Herói da resistência
PAULO WERNECK – Revista Serafina
Desenhista da revista "New Yorker", Jean-Jacques Sempé traduz em livro a melancolia e a poesia dos tipos parisienses
Jean-Jacques Sempé
Jean-Jacques Sempé pertence à mesma linhagem de cronistas de Paris que inclui, na fotografia, Robert Doisneau, na canção popular, Boris Vian, e, no cinema, Jacques Tati.
Os tipos populares e desajustados que aparecem nas obras desses artistas, com a dupla marca da graça e do fracasso, do humor e da melancolia, deram a cara da França na segunda metade do século 20. O país curava as feridas do trauma da ocupação alemã durante a Segunda Guerra e já curtia as delícias da "invasão" econômica e cultural norte-americana. Seja nas lentes de Doisneau, seja nas letras de Vian, seja nos desenhos de Sempé, o heroísmo é posto de lado para dar lugar a uma poesia que vem diretamente da rua, do homem comum e da vida cotidiana. Em qualquer lugar do mundo, em qualquer outra cidade, essas figuras estariam fora de lugar, mas, em Paris, elas não ficam desambientadas. Se existe um lugar certo para ser "gauche" na vida, é ali.
Nas canções de Serge Gainsbourg, os personagens cultivam a melancolia em ambientes escuros, enfumaçados; os de Sempé são diurnos, andam de bicicleta ou em meio à multidão, banhados por uma luz colorida, solar. Mas nem por isso abandonam a melancolia.
Paris é ao mesmo tempo cenário e personagem. Já não é mais a capital napoleônica nem a musa das vanguardas. Cosmopolita e agitada, por vezes adquire ares provinciais ou a atmosfera de um enorme bairro. Os "heróis" são sapateiros, pequenos comerciantes, funcionários do metrô. Sem falar nos tipos desajeitados, que não podem ou não querem se encaixar na sociedade de consumo, cujo símbolo máximo é o solteirão Monsieur Hulot, o desempregado convicto de "Meu Tio", de Jacques Tati.
Em "Raul Taburin", (Cosac Naify, 92 págs.), que acaba de sair no Brasil, Sempé põe em cena mais um desses anti-heróis parisienses. Ao lado de "Marcelino Pedregulho", que saiu em 2009, o livro traz para o Brasil a sua produção menos conhecida, que vai além do trabalho que o consagrou mundialmente, o best-seller infantil "O Pequeno Nicolau" (cujo texto é de René Goscinny, o roteirista de "Asterix").
No livro recém-lançado, Raul Taburin é um renomado especialista em bicicletas (outro ícone parisiense). Tanto assim que, no seu bairro, elas são conhecidas como "Taburinas". Na sua oficina de consertos, Raul é capaz de reconhecer todos os guinchos, rangidos e até os defeitos mais sutis ("nas curvas, ela é um pouco rebarbativa", diz um cliente).
O mecânico esconde, porém, um grande segredo: não sabe pilotá-las. Nunca foi visto andando de bicicleta e foi justamente a incompetência com os pedais que o levou a conhecer, tombo após tombo, cada engrenagem, cada parafuso das engenhocas, e a aprender a fazer curativos como ninguém. Não é o caso do próprio Sempé, que disse à Folha ter andado de bicicleta durante a vida inteira, "até debaixo de chuva e quando ia jantar na casa dos amigos". Só pendurou os pedais depois de um acidente, que, segundo ele, não foi causado por uma bicicleta.
Desde 1978, Sempé é uma das estrelas da revista "The New Yorker", para a qual produz em média três capas por ano. Sem mudar o traço ou a sutileza do humor, ele fala ao mesmo tempo com crianças e adultos sem fazer concessões estilísticas. Não por acaso, um dos programas preferidos de seu tradutor brasileiro, Mario Sergio Conti, quando morou em Paris, era ir ver os desenhos de Sempé com sua filha de quatro anos. Por isso mesmo, os desenhos dele para a "New Yorker" de vez em quando saem na brasileira "Piauí", editada por Conti. Volta e meia Sempé é citado como uma espécie de herdeiro parisiense de Saul Steinberg, o grande ilustrador da "New Yorker" que, de certa forma, também converteu a cidade em personagem lírica e cheia de graça. E que ajudou a elevar a ilustração para a imprensa a um estatuto verdadeiramente artístico.
Sua produção para a revista se encontra reunida no livro "Sempé à New York", lançado na França em 2009.
O livro traz uma longa entrevista concedida ao jornalista Marc Lecarpentier em que Sempé narra o sua memorável parceira com a equipe da "New Yorker".
Foi lá que ele teve dois dos encontros fundamentais da sua carreira: com Steinberg e com o mítico editor da "New Yorker", William Shawn. Mesmo sendo fã de Sempé, Shawn fazia algo que até hoje é inusual na relação entre um desenhista e um editor, mas que na "New Yorker" era natural: inúmeros pedidos de retoques –um braço de um personagem precisou ser refeito dez vezes, uma menina desenhada a aquarela precisou ser removida, o que é um trabalhão. "Quando ele me dizia 'é preciso mudar isso aqui", diz Sempé, "eu mudava sem discutir."
Já Steinberg, diz o francês, morreu amargurado, quase agressivo: "Queria ser reconhecido como um artista, não como um desenhista de imprensa". Ao contrário de Steinberg, o francês pode dizer que está chegando lá: sua próxima exposição será inaugurada em novembro em Paris, na galeria Martine Gossieaux, a duas quadras do Museu d'Orsay.

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