domingo, junho 19, 2011

O poderoso Tüür - Arthur Dapieve


O poderoso Tüür
ARTHUR DAPIEVE – O Globo
Uma das canções mais engraçadas da trupe britânica Monty Python se chama “Decomposing composers”. Algo como “Compositores em decomposição”. Foi lançada num LP de 1980, “O álbum obrigatório por contrato do Monty Python”. Na letra, Michael Palin alista mestres da música clássica que passaram desta para a melhor.
“Beethoven se foi, mas sua música vive”, lembrava. “E Mozart não faz mais compras/ Você nunca mais vai encontrar Liszt ou Brahms de novo/ E Elgar não atende a porta.” A letra seguia nessa balada, com um refrão ao mesmo tempo sarcástico, terno e sábio: “Eles são compositores em decomposição/ Não há muito que qualquer um possa fazer/ Você ainda pode ouvir Beethoven/ Mas Beethoven não pode lhe ouvir.”
Uma olhada nos repertórios tanto da maior parte dos CDs lançados no gênero quanto da esmagadora maioria dos concertos faz pensar no Monty Python. Preponderam os “compositores em decomposição”. Por mais que maestros e músicos tentem “contrabandear” autores contemporâneos para seus concertos, as plateias formadas ainda demonstram resistência a quase qualquer coisa escrita a partir do século XX.
Mesmo a Segunda Escola de Viena, representada por três sujeitos que morreram em 1935 (Berg), 1945 (Webern) e 1951 (Schoenberg), não costuma ser executada com frequência. A não ser quando a peça, como o “Concerto para violino” de Berg, flerta com a tradição. No caso, uma cantata de Bach. Sem querer, isso reforça duas das quatro calúnias mais associadas à música clássica: “É difícil, é cara, é antiga, é conservadora”.
Embora se possa argumentar que o melhor da produção no gênero tenha ficado num passado mais remoto e glorioso, muita coisa boa continua sendo composta. (Mas o mesmo não poderia ser dito do rock ou do samba? Claro que sim!). Eventualmente, até composta por músicos dos gêneros ditos populares. Entre os roqueiros, Paul McCartney, Roger Waters, Elvis Costello e Joe Jackson já compuseram oratórios, óperas e sinfonias. Na MPB, Francis Hime e Wagner Tiso volta e meia também cruzam a ponte.
Isso não significa que essa gente precise da “respeitabilidade” que supostamente só o mundo dos clássicos poderia dar. Nada disso. Os seis mencionados já são assaz respeitáveis pelo que produzem no campo popular. Porém, o trabalho com orquestras, grandes coros ou pequenos conjuntos de câmara lhes abre o leque de possibilidades expressivas. A música clássica sempre terá muito a dizer sobre o aqui e o agora.
Ficar pingando nomes de compositores em plena atividade seria caminho certo para o esquecimento e a injustiça. Pois, apenas aqui, além de setentões como Marlos Nobre (de quem recentemente a Orquestra Petrobras Sinfônica nos deu a ouvir, pela primeira vez, a beleza de “Movimentos sinfônicos — Em memória de um anjo”), há gente jovem vinda de vários cantos, como o pianista André Mehmari, trintão do jazz.
Um contemporâneo estrangeiro que tenho escutado com interesse, além de me possibilitar o trocadilho infame lá do título, é o estoniano Erkki-Sven Tüür, nascido em 1959. Entre 1979 e1984, ele liderou uma banda de rock  progressivo chamada In Spe, “na esperança” em latim, influenciada por Zappa e Genesis. O relativo sucesso não impediu Tüür de abandoná-la para se dedicar a composições sinfônicas, que, não raro, lançam mão de amplificação e de partes para percussão que extasiariam Keith Moon.
A obra de Tüür é distinta da de seu compatriota mais velho e conhecido, Arvo Pärt, que hoje se inspira na música medieval. A revista “Gramophone” já o considerou um dos mais promissores sinfonistas da nova geração. Suas sinfonias (são seis até o momento) são como redemoinhos sensoriais, embora às vezes me pareçam ora com música incidental para cinema de terror ora com mera angústia sem resolução.
Todavia, gosto muito de algo que Tüür diz no encarte de um CD lançado no ano passado pelo selo alemão ECM. No disco, a Nordic Symphony Orchestra, regida pela bonita Anu Tali, apresenta a sua mais recente sinfonia (batizada “Strata”) e um concerto para clarinete, violino e orquestra (“Noêsis”). Ao explicar por que “insiste” em compor sinfonias, Tüür afirma, criticando uma certa estética MTV: “Estou bastante perturbado pelo crescimento da fragmentação, que, por sua vez, vem acompanhada pela incessante inabilidade de se concentrar nos fenômenos mais profundos e sofisticados”.
Se suas poderosas sinfonias demandam a atenção do disperso ouvinte contemporâneo, suas peças mais curtas, como os sete movimentos independentes da série “Architectonics” (escrita entre 1984 e 1992) ou a revisão barroca de “Lighthouse” (1997), são diretas e comoventes. Nelas, Tüür soa mais focado e seguro, partindo de fragmentos de Mozart ou Bach para chegar onde nenhum compositor jamais esteve.
Com a tradição de mortos dessa dimensão oprimindo como um pesadelo o cérebro dos vivos, certamente é mais difícil compor música  clássica relevante hoje do que no século XVIII, quando muito estava em aberto. Difícil, não paralisante. E um cara como Tüür, de grandes construções movediças, está aí para não deixar o martelo cair.
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Nas próximas quarta e na quinta, um exemplo de juventude e vigor da música clássica se apresenta no Municipal: o maestro venezuelano Gustavo Dudamel, de 30 anos, e sua Orquestra Sinfônica Juvenil Simón Bolívar tocam Mahler, Ravel, Stravinsky, Castellanos e Chávez (não aquele, claro).

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