quinta-feira, maio 20, 2010

A coluna em jogadas

A coluna em jogadas
ROBERTO DaMATTA - O Globo - 19/05/2010

A semana passada teve como evento central a convocação dos jogadores da nossa seleção.
Coisa formidável essa mobilização do Brasil pelo futebol que é o nosso maior professor de liberalismo, mostrando como é possível conciliar liberdade com as coerções impostas por um jogo demarcado por normas que limitam os disputantes — o exato oposto de nossas concepção do poder. A consciência das regras é a consciência do poder, única fonte de seus limites numa democracia ou jogo de iguais. É ela que separa os papéis dos disputantes. O número “10” foi de Pelé, mas hoje pertence a outros craques. Um goleiro só excepcionalmente usa os pés; o oposto vale para os outros jogadores, obrigados a usar a parte de baixo do corpo como instrumento da parte de cima. A ênfase no abaixo da cintura, o equador moral de Bakhtin que, no seu livro clássico sobre Rabelais divide o corpo humano em dois hemisférios: abaixo e acima de cintura, subverte tudo. No Ocidente Iluminista, o lado de cima — da cabeça, das mãos e da racionalidade ajuizada — sempre foi superior. Mas no universo da cultura popular, do carnaval (vejam o que escrevi sobre isso) e do riso, o que conta é o lado de baixo. Donde o elo profundo do futebol com os destituídos. Temos uma equação curiosa: os políticos assentados dão rasteiras no povo; e os futebolistas em pé promovem uma privilegiada experiência com a justiça, a igualdade, a vitória e a autoestima.
Minha tia Lucília, filha do grande e esquecido dramaturgo Armando Gonzaga, conversa casualmente na porta da escola com uma ricaça, mãe de um colega de seu filho, meu querido primo Ronaldo. A mãe, arrogante e tão apaixonada pelo seu rebento quanto Pigmaleão por Galeteia, o professor Higgins por Elisa e o Lula por Dilma, dizia que o rapazinho era extraordinário. Poderia vencer o Joe Louis, jogava tanto quanto o Zizinho, era mais inteligente que Rui Barbosa e escrevia melhor do que Jorge Amado. Ademais, estava destinado a ter um peso extraordinário nos destinos do país e era muito preocupado com os pobres. Perto dele, São Francisco de Assis era juvenil. Depois de ter feito essa propaganda cretina do filho por cerca de meia hora, caiu finalmente em si e, lembrando-se de que não há genialidade sem a comparação — sem o outro que, pelo contraste com ela, a legitima —, perguntou a Lucília: “E o seu, como é?” Ouviu um irônico: “Ele é normal!”
Todo mundo quer vencer e, às vezes, vencer de qualquer modo — como manda o nosso figurino do poder, tão embaraçosamente claro neste processo eleitoral —, mas, no futebol, a vitória se faz por meio de regras estabelecidas, conhecidas dos jogadores e dos espectadores. Vencer com gol de mão é possível e fica bem aos maradonas, não aos pelés e, por extensão, a nós, brasileiros, que somos pentacampeões mundiais jogando (como estamos todos convencidos) sempre com classe, arte, força, amor pela camisa e lisura. Nossa relação com o futebol é quase oposta ao nosso modo de encarar as leis que regem o mundo diário. Nele, forjamos medalhões e nulidades que brilham apenas enquanto estão no poder e brasileiramente fazem favores aos amigos e usam os recursos do Estado para autovangloriar seus (des)feitos pois, em geral, a dinâmica do jogo Brasil não pode ser desenhada por uma linha reta, mas seria mais bem representada por idas e vindas.Passos de um bêbado que detesta o equilíbrio. No caso: a alergia contra a igualdade e a submissão de todos (inclusive do Estado) às mesmas normas, como é o caso do futebol.
O projeto Ficha Limpa é da mesma linhagem do Plano Real. Trata-se de uma norma preliminar, sem a qual o jogo torna-se impossível. O dado mais importante de uma economia capitalista é o valor do dinheiro; de uma democracia liberal é a figura da representação, quando alguns são transformados pelo simbolismo político moderno, fundado na escolha e na quantidade, numa pessoa única. O representar é uma incorporação livre e voluntária como queria o bíblico Hobbes. É uma delegação dada a um outro cidadão, de decidir sobre assuntos que o “nosso” grupo concorda. Como, pois, se deixar representar por canalhas e criminosos? O que representa um bandido com ficha na polícia, mas protegido pelo Parlamento? Esse projeto tem repercussões junto aos partidos e, como toda lei, não resolve nada enquanto não for honrada com sua aplicação ao real, punindo tanto os outros quantos os nossos. Isenção, sem a qual, as virtudes cívicas do altruísmo — que Rousseau queria transformar em religião — não superam o jogo da politicagem rasteira como rotina, como testemunhamos neste final de governo. O ilustre líder do governo no Senado, Romero Jucá, traduziu esplendidamente a ética governista. Como o projeto Ficha Limpa é da sociedade, o governo não tem obrigação de apoiá-lo. A prioridade é o pré-sal que vai salvar o Brasil, transformando todo mundo em funcionário público, como na Grécia e em Portugal. Parece que o senador entrou na minha obra. O que ele disse confirma a separação radical entre Estado e sociedade vigente no Brasil. Nós, com uma carga tributária fenomenal, trabalhando para a máquina de barganhas e ineficiências que constitui o Estado nacional. É um retrato brilhante deste governo, sempre dividido entre “nós” e “vocês”, como diz reiteradamente a candidata-Lula.

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