sexta-feira, maio 28, 2010
O BARRIL DE PÓLVORA COREANO
O BARRIL DE PÓLVORA COREANO
EDITORIAL - O ESTADO DE S. PAULO - 28/5/2010
O primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, deverá se reunir hoje em Seul com o presidente da Coreia do Sul, Lee Myung-bak, para tratar da crise na Península Coreana desencadeada pelo torpedeamento da corveta sul-coreana Cheonan em 26 de março, que matou 46 marinheiros. Um relatório oficial de 400 páginas sobre o ocorrido é inequívoco ao acusar a Coreia do Norte pelo ataque em águas próximas à fronteira marítima entre os dois países. Demarcada pela ONU depois da guerra de 1950 a 1953, a linha é contestada pelo regime de Pyongyang ? que, evidentemente, também nega a acusação do Sul.
A ida de Jiabao a Seul parece ser a única concessão de Pequim aos EUA, no caso. Em visita à capital chinesa, no começo da semana, sintomaticamente em companhia do comandante da frota americana no Pacífico, almirante Robert Willard, a secretária de Estado Hillary Clinton insistiu com o presidente Hu Jintao que o ultraje deveria ser punido com a aplicação de sanções contra a Coreia do Norte pelo Conselho de Segurança. A China? Que sustenta a ditadura feudal de Kim Jong-il? Não disse não, muito menos sim. Os porta-vozes chineses limitaram-se a informar que o país fará a "sua própria avaliação" do incidente e pediram "contenção" às partes.
A conduta de Pequim será crucial para o desenrolar do confronto entre as Coreias ? E não apenas por terem os chineses poder de veto sobre as decisões do Conselho de Segurança. Peça-chave na região, a China mantém laços históricos e ideológicos com Pyongyang, mas também desenvolveu fortes relações econômicas e comerciais com Seul. No ano passado, apoiou a adoção de sanções à Coreia do Norte por seu programa nuclear. Fontes diplomáticas americanas afirmam ter indícios de dissensões na hierarquia chinesa em relação ao tratamento a dar ao incômodo, inescrutável aliado.
Embora a cúpula militar tenda a se alinhar com os seus camaradas norte-coreanos ? o que remonta à Guerra da Coreia, quando tropas de ambos os países enfrentaram os EUA e seus aliados ?, os líderes civis estariam perplexos e exasperados com as atitudes do vizinho que só servem para complicar a estratégia chinesa na Ásia e as suas aspirações ao reconhecimento internacional como uma potência promotora da estabilidade no sistema global. Quando a Coreia do Sul responsabilizou a do Norte pelo ataque à sua corveta, atribuiu-se a uma alta autoridade chinesa a declaração de que a investida tinha sido "muito infeliz" ? mas é de duvidar que Pequim faça um juízo desses em público.
"China e Coreia do Norte são tão próximas quanto lábios e dentes", diz o professor Liu Jingyong, do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade Tsinghua, ouvido pela correspondente do Estado em Pequim, Cláudia Trevisan. Ecoando, talvez, a visão mais ortodoxa dos círculos dirigentes chineses, ele critica a comunidade internacional por seguir uma política de "dois pesos e duas medidas" em relação às Coreias. Em novembro do ano passado, quando um navio norte-coreano foi atingido em águas disputadas pelos dois países, lembra o acadêmico, Seul não se desculpou, mas nem por isso se falou em sanções diplomáticas contra o governo do presidente Lee Myung-bak.
O problema imediato não é bem esse, de toda forma. Trata-se da escalada da crise na Península. As Coreias nunca deixaram de estar tecnicamente em guerra desde 1953. O que existe entre os dois países é apenas um armistício ? e os Estados Unidos mantêm no Sul 29 mil soldados. A rotina das tensões na área não impediu nos anos recentes uma aproximação econômica mutuamente proveitosa. Pyongyang depende vitalmente da moeda forte que recebe por suas vendas ao vizinho e este tem 120 empresas no complexo industrial de Kaesong, na Coreia do Norte, onde emprega 45 mil trabalhadores locais.
Por mais que a eclosão de uma guerra seja improvável? A não ser que o irascível Kim Jong-il enlouqueça de vez? O perigo de choques militares na fronteira comum não pode ser descartado. Aplica-se à crispação de parte a parte a proverbial analogia da faísca e do barril de pólvora.
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