domingo, julho 11, 2010

Lembrando, por Manoel Carlos

Crônica
Lembrando
Manoel Carlos na Veja Rio - 14/07/2010
Quem me acompanha por aqui, mesmo eventualmente, já deve ter lido uma ou duas linhas sobre o colégio onde estudei como interno, dos 11 aos 15 anos. A evocação constante desse período escolar não significa, nem de longe, que fui um bom aluno. Jamais, para tristeza dos meus pais, principalmente da minha mãe, professora formada pela Escola Normal de São Paulo, que inicialmente me quis e me sonhou padre, contentando-se, mais tarde, com a minha atividade de coroinha e de congregado mariano. Que depois me incentivou a ser médico, também sem resultado. E que, por fim, me pediu que lhe desse ao menos o diploma do curso ginasial. Mas nem isso, apesar de tão pouco, eu fui capaz de lhe dar.
Pois mesmo assim, com uma vida escolar tão precária, o internato dirigido por padres espanhóis agostinianos, severos e castigadores, permanece na minha memória como uma das quadras mais felizes da minha vida. E o que era um castigo imposto pelo meu pai, que achava que só mesmo um duro internato conseguiria me salvar, revelou-se um prêmio para o menino rebelde, considerado perdido pela vizinhança e por grande parte da família.
Pois bem: dois acontecimentos me levaram a uma nova e acentuada lembrança do internato. O primeiro deles foi ter lido num jornal aqui dos Estados Unidos, onde me encontro de férias, a notícia da morte, num desastre de carro, de uma jovem noiva, de casamento marcado para setembro. Diante da tragédia, o noivo, também muito jovem, deu cabo à própria vida, deixando uma carta na qual dizia estar indo ao encontro da noiva, que o esperava. Isso me fez lembrar de um rapaz que morava na vizinhança do internato. Chamava-se Antonio Bizet, que nós, os alunos, pronunciávamos Bizê, como o compositor francês, mas ele contestava, afirmando que o seu nome era Bizete, dando som ao “t” mudo, o que nos causava grande surpresa, pois já naquele tempo gostávamos de música e um sobrenome assim soava como nobre. Era um rapaz simples e educado. Nas festas, como no aniversário da cidade e na chegada dos expedicionários da II Guerra Mundial, em 1945, Bizet soltava a voz, uma bela voz de tenor, cantando músicas lindas e melancólicas, quase todas falando de amores infelizes, das quais ninguém conhecia a origem. Uma dessas canções contava a história de um suicida que apelava para o extremado gesto por acreditar que sua noiva o esperava entre as nuvens. Me lembro de três versos:
Que não tentem impedir minha passagem,
eu não curvo a cabeça a ninguém.
Minha noiva me espera nas nuvens...
Alguns anos mais tarde fiquei sabendo que Antonio Bizet, depois de perder a noiva, vítima de doença, se afogara deliberadamente no estreito rio que cortava a cidade. Obviamente, ao ler a notícia no jornal americano, a voz de Antonio Bizet ecoou dentro de mim:
Que não tentem impedir minha passagem,
eu não curvo a cabeça a ninguém.
Minha noiva me espera nas nuvens...
O segundo acontecimento que me trouxe de volta o internato foi saber que o fogo devorou boa parte do belo e antigo prédio onde por quatro anos eu fui aprisionado como castigo e do qual saí, repito, para lembrá-lo como um dos períodos mais felizes da minha vida. Tive vontade de voltar à pequena cidade para ver os estragos do incêndio, mas não tive coragem de encarar o que lá ficou de mim, agora chamuscado, dolorosamente.
e-mail: almaviva@uninet.com.br

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