quinta-feira, julho 29, 2010

Não culpem a vítima

Não culpem a vítima
Ciça Guedes – O Globo - Publicada em 29/07/2010 às 17h48m
Deve haver uma explicação psicológica para a tendência que as pessoas têm de culpar as vítimas de tragédias. Como não sou do ramo, arrisco: gera um conforto do tipo "comigo ou com meus filhos não vai acontecer porque não fazemos isso". Mais de uma vez se provou que a tese é equivocada. A grande maioria das vítimas de estupro, por exemplo, não é de garotas vestidas de forma provocante. Crianças e adolescentes são atingidos por balas perdidas em casa e na escola. Mas estatísticas não comovem nem demovem turrões, pelo visto.
A tese da culpa da vítima volta à tona por conta da morte de Rafael Mascarenhas, filho da atriz Cissa Guimarães. "O garoto também estava errado porque andava de skate num túnel fechado", ou ainda "que mãe é essa que deixava o filho andar de skate de madrugada num túnel fechado?" são algumas das frases que tenho ouvido por aí. O "também" da primeira frase é o detalhe mórbido que torna essa visão capenga ainda mais assustadora, porque iguala a atitude de um rapaz que praticava uma pequena transgressão à de outro rapaz, Rafael Bussamra, que sai de casa a bordo de uma máquina potencialmente mortífera, adaptada para correr mais do que outros carros. E invade áreas proibidas. Poderia ter matado um operário, e aí a estratégia de subornar os policiais, "maquiar" o carro e esquecer esse tremendo aborrecimento teria se revelado acertada.
O empresário Roberto Bussamra, pai do atropelador, desistiu de pagar o suborno aos policiais militares, de acordo com as notícias, porque viu que o investimento não valeria a pena, já que a vítima era uma pessoa conhecida e o caso ganharia notoriedade. Qual será a punição para ele?
Em vez de perguntar "que mãe é essa que deixa um filho andar de skate de madrugada?", deveriam perguntar que pai é esse que paga para tornar o carro do filho ainda mais veloz; que no outro dia, tendo tido tempo para refletir sobre suas atitudes, tem frieza suficiente para circular pela cidade, tirar dinheiro do banco, encontrar de novo os policiais e enganá-los, afirmando que precisaria ainda retirar o resto do dinheiro quando já tinha mais do que a metade do valor nos bolsos? Qual será a punição para ele?
Há anos, sofri algo parecido. O pai da minha filha mais velha foi assassinado quando andava de moto, num crime que nunca foi esclarecido. Apesar do grande número de testemunhas, de a placa do carro em que estava o criminoso ter sido anotada, a polícia prendeu o dono do carro e logo o libertou, alegando que tinha um álibi e não sabia informar quem estava com o automóvel no dia do crime. Depois, a polícia pediu dinheiro e mais dinheiro ao meu sogro, a pretexto de pôr gasolina no carro e fazer diligências. Quem teria coragem de negar? Mas, claro, deu em nada, e a culpa ficou mesmo para nós: quem mandou o rapaz gostar de moto? Por favor, pelo menos em nome de algum conforto moral para a família de Cissa, parem com essa estupidez e culpem as pessoas certas.
CIÇA GUEDES é jornalista.

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