sexta-feira, agosto 06, 2010

Isolamento traz riscos a plantas remanescentes da Mata Atlântica

06/08/2010 14h07 

Isolamento traz riscos a plantas remanescentes da Mata Atlântica

Trabalho na região de Ilha Solteira busca evitar empobrecimento genético.
Se respeitado, Código Florestal de 1965 garantiria ligação entre florestas.

Igor Zolnerkevic Da ‘Unesp Ciência’
G1 publica abaixo, com exclusividade, reportagem da 11ª edição da revista “Unesp Ciência”.Clique aqui para ter acesso ao conteúdo completo da edição.
A árvore ao lado, um capitão-do-campo, é uma sobrevivente. Uma das poucas que restaram de uma mata que cobria toda a região às margens da Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira, no Rio Paraná. Rica em biodiversidade, a área é o ponto de encontro entre dois grandes biomas brasileiros. No lado sul-mato-grossense do rio começa o Cerrado; na margem paulista, termina a Mata Atlântica. Mas com o avanço da agricultura e da pecuária, além da própria construção da usina na década de 1960, restaram poucos exemplares para comprovar essa exuberância.
A história seria essa, não fosse o trabalho de pesquisadores como Mário Luiz Teixeira de Moraes, engenheiro agrônomo da Unesp de Ilha Solteira. Completamente isolado, esse capitão-do-campo (Terminalia argentea) não teria como deixar descendentes, e seu patrimônio genético estaria condenado. Mas Moraes e colegas têm coletado sementes de árvores solitárias como esta à beira de rodovias, de cursos d’água e em pastagens, e também de espécimes localizados em fragmentos florestais da região, para plantá-las e cultivá-las na Fazenda de Ensino, Pesquisa e Extensão (Fepe) da Unesp, em Selvíria (MS).
Ao impedir que as espécies desapareçam de vez, os bosques plantados funcionam como uma espécie de arquivo vivo que preserva a diversidade genética de populações cuja maioria está ameaçada ou nem sequer existe mais. “Quero ter a base genética das espécies nativas”, diz Moraes, que brinca comparando seu trabalho ao de um marciano que capturasse pessoas em Ilha Solteira para ter uma amostra significativa da variação genética dos seres humanos que vivem na cidade.
Outro objetivo do projeto é avaliar o impacto da fragmentação das florestas na diversidade dos remanescentes. As análises até o momento confirmam as piores previsões das teorias de genética de populações: o isolamento aumenta os cruzamentos entre árvores com parentesco próximo, e as novas gerações são mais pobres geneticamente, e, portanto, mais vulneráveis à extinção.
Flor de caliandra com cores atraentes para agentes polinizadores. (Foto: Guilherme Gomes / Unesp Ciência)
Moraes faz as coletas desde 1980 em uma área num raio de 400 km ao redor da fazenda. Ele nunca pega sementes do chão, só direto das árvores-mãe. Assim, sabe quais são aparentadas e pode estudar a influência da genética e do ambiente nas características das árvores durante seu desenvolvimento. Ao longo do tempo ele acompanha dados como altura, diâmetro e volume do tronco, a arquitetura dos galhos, o tamanho das folhas, a taxa de sobrevivência etc.
Esse trabalho de coleta específica e cultivo de sementes de árvores é conhecido como “teste de progênies”. A técnica, que foi desenvolvida para conservar e avaliar o “pedigree” de espécies cultivadas pela indústria, como pinheiros e eucaliptos, começou a ser aplicada a árvores nativas do Brasil apenas nos anos 1970.
Moraes vem sofisticando seus testes com a ajuda de dois jovens pesquisadores do Instituto Florestal, os engenheiros florestais Miguel Luiz Menezes Freitas e Alexandre Magno Sebbenn, que analisam a genética dos bosques plantados e das populações naturais de onde as árvores vieram.
Árvores das araras
Na Fepe, há mais de 180 bosques para testes de espécies ameaçadas e de interesse comercial, como paineiras, perobas, ipês, barus, canafístulas, capitães-do-campo, jacarandás-caroba, canudos-de-pito, louro-pardos, gonçalo-alves e copaíbas.
A árvore mais cultivada, porém, é a quase extinta aroeira preta (Myracrodruon urundeuva). Ela é interessante para pesquisa porque faz parte do seleto grupo de espécies de árvores tropicais que têm sexos separados (20% do total). Isso ajuda a avaliar com mais precisão como é feita a dispersão de pólen e sementes.
Agrônomo Mário Moraes, preservador de aroeiras
no País. (Foto: Guilherme Gomes / Unesp Ciência)

As aroeiras masculinas têm flores com estames, de onde sai o pólen que pega carona nas abelhas para fecundar as flores das aroeiras femininas. Na estação seca, quando as folhas caem, as flores viram sementes com asas, que são dispersas pelo vento e às vezes por aves (a palavra “aroeira” significa “árvore da arara”). A árvore foi sistematicamente derrubada ao longo dos anos por sua madeira de excelente qualidade – sua resistência, quando adulta, é quase três vezes maior que a do concreto. Mas para o tronco atingir esse estágio são necessários mais de 200 anos.
Para descobrir o impacto dessa exploração nos remanescentes da árvore no Estado de São Paulo, os pesquisadores tiveram de olhar para longe. Parte das aroeiras plantadas na Fepe veio de sementes coletadas a mais de 200 km dali, na Estação Ecológica de Paulo de Faria, em Paulo de Faria (SP). O local tem a maior floresta do noroeste paulista, mas a equipe percebeu que lá as árvores estão perigosamente isoladas.

"Como temos as coordenadas de todas as árvores, no momento em que descobrimos quem é a mãe de um juvenil, sabemos a distância que a semente percorreu até se estabelecer. E quando também encontramos quem é o pai, a distância entre ele e a mãe nos diz quanto o pólen percorreu."
Alexandre Magno Sebbenn, engenheiro do Instituto Florestal
A pesquisa foi feita no doutorado da agrônoma Ana Paula Gaino, sob orientação de Sebbenn, e teve os resultados publicados em fevereiro na revista Conservation Genetics. A dupla, juntamente com Moraes, Freitas e outros colegas, vasculhou os 435 hectares da estação. “Para o experimento funcionar, tem de mapear tudo, sem deixar escapar nenhum indivíduo fértil da espécie”, explica Sebbenn.
O grupo encontrou 467 espécimes, a maioria concentrada em uma área de 142 hectares. Eles registraram a posição e coletaram o material genético nas folhas das árvores adultas, que nasceram muito antes da fragmentação, e nas folhas dos 149 “filhotes” de árvores, ou juvenis, que nasceram após a fragmentação da floresta.
Também coletaram 514 sementes de 30 árvores adultas e as plantaram na Fepe, no esquema de teste de progênies, para depois extrair material genético das folhas das mudas. Extrair DNA das sementes é difícil, entre outros motivos porque é complicado separar tecido do embrião do tecido da mãe. De volta ao laboratório, eles fizeram a comparação de cinco regiões do DNA dos adultos, juvenis e progênies, em um trabalho que custou R$ 100 mil, financiados por Fapesp e CNPq.
Teste de paternidade
A análise do DNA funciona como teste de paternidade e maternidade para os juvenis e como teste de paternidade para as progênies (as mães delas são obviamente conhecidas – as árvores de onde foram coletadas as sementes). São as “árvores genealógicas” resultantes desses testes de parentesco que permitem aos pesquisadores descobrirem como anda a dispersão de pólen e sementes na floresta.
Antes da análise genética, os pesquisadores dependiam de modelos aproximados para estimar essa dispersão. “Agora vamos lá e medimos diretamente”, diz Sebbenn. “Como temos as coordenadas de todas as árvores, no momento em que descobrimos quem é a mãe de um juvenil, sabemos a distância que a semente percorreu até se estabelecer. E quando também encontramos quem é o pai, a distância entre ele e a mãe nos diz quanto o pólen percorreu.”
Pimenta-do-macaco, com fruto espalhado por animais. (Foto: Guilherme Gomes / Unesp Ciência)
Os pesquisadores descobriram que mais da metade das sementes de aroeira se estabeleceu a menos de cem metros da árvore-mãe, apesar de algumas terem viajado até 739 metros. O pólen que originou os juvenis alcançou distâncias entre 3 e 903 metros, e o que originou as progênies entre 3 e 890 metros, sendo que mais da metade do pólen nos dois casos não viajou mais que duzentos metros. Sebbenn acredita que esses números devem variar muito de ano para ano. “No próximo ano pode haver mais ou menos chuva, vento e abelhas, e o resultado será diferente”, diz. “Essa é a principal deficiência da pesquisa: ela devia ser repetida por alguns anos.”
As mães de todos os juvenis foram encontradas, o que significa que nenhuma semente que deu origem a eles veio de fora da estação ecológica. Já em relação aos pais, eles não foram identificados em apenas 3% dos juvenis e em 2% das progênies, o que levou os pesquisadores a concluírem que se há pólen vindo de outros fragmentos de floresta para a estação, é em quantidade muito baixa. O ideal seria em torno de 10%. De acordo com Sebbenn, esse isolamento não é saudável.

"Em florestas contínuas, as populações mesmo afastadas vão crescendo e trocando genes entre elas. Mas se não aparece de vez em quando uma semente de fora ou se vem pouco pólen vindo de uma população vizinha, o parentesco dentro da população cresce muito rápido."
Alexandre Magno Sebbenn, engenheiro do Instituto Florestal
Quando a floresta era contínua, sempre havia boas chances de uma abelha acabar voando mais longe que de costume, trazendo consigo pólen de outras populações, ou de um pássaro ou mamífero depositar sementes de outras bandas. A fragmentação interrompeu esse processo. “Em florestas contínuas, as populações mesmo afastadas vão crescendo e trocando genes entre elas”, explica Sebbenn. “Mas se não aparece de vez em quando uma semente de fora ou se vem pouco pólen vindo de uma população vizinha, o parentesco dentro da população cresce muito rápido.”
Essa perda de diversidade genética também foi observada pelos pesquisadores em uma população de outra espécie de árvore ameaçada, a copaíba (Copaifera langsdorffii), fonte do óleo largamente usado nas indústrias cosmética e farmacêutica. Assim como a aroeira, a copaíba é polinizada por abelhas, tem vida longa – de até 400 anos –, e uma madeira bastante desejada. A diferença é que a espécie, assim como ocorre com a maior parte das árvores tropicais, é hermafrodita e tem as sementes dispersas por animais.
Os pesquisadores, colaborando com o mestrado de Ana Cristina Carvalho, analisaram a diversidade genética das 112 copaíbas adultas e dos 128 juvenis do Bosque Municipal de São José do Rio Preto, um fragmento florestal de apenas 4,8 hectares dentro da cidade. O trabalho, publicado na revistaHeridity em fevereiro, em co-autoria com Céline Jolivet, do Instituto de Genética de Florestas, em Grosshansdorf, Alemanha, revelou que quase metade das variedades de DNA observadas eram exclusivas dos adultos. “A nova geração já não representa toda a diversidade genética de seus pais”, diz Sebbenn, que orientou o trabalho. “Perdemos variedades que a evolução levou milhares de anos para selecionar.” Essa 'erosão' genética faz com que a espécie perca a flexibilidade para lidar com as mudanças na paisagem e no clima atuais, condenando-a à extinção.
Para piorar a situação, os pesquisadores observaram tanto nas aroeiras quanto nas copaíbas que os juvenis vizinhos são praticamente todos irmãos ou meio-irmãos. É natural que parentes cresçam próximos, uma vez que a tendência é que a maioria das sementes de uma árvore caia no chão e se estabeleça por ali mesmo. Mas esse quadro, em condições ideais, costuma ser contrabalançado pelo ocasional estabelecimento de uma semente “estrangeira”. O isolamento dos fragmentos, porém, diminuiu drasticamente essa possibilidade. “Os adultos já tinham alto parentesco, só que o parentesco entre os descendentes deles é muito maior”, diz Sebbenn.
Essa vizinhança excessivamente familiar aumenta em muito as chances do cruzamento entre parentes próximos, a chamada endogamia. “Os descendentes em geral não são viáveis. Nascem com anomalias como o albinismo, são mais suscetíveis a doenças e acabam morrendo logo. Mesmo quando chegam a se estabelecer, não são férteis”, explica Sebbenn. Logo, a tendência da população é diminuir até desaparecer.

Corredores e trampolins
Esses resultados, juntamente com os de outros estudos recentes de pesquisadores no Brasil e no exterior com as mais diferentes espécies de árvores, reforçam a urgência de se quebrar o isolamento reprodutivo dos fragmentos florestais.
“A tecnologia para instalar os corredores existe, falta apenas vontade política"
Mário Luiz Teixeira de Moraes, engenheiro agrônomo da Unesp de Ilha Solteira

A solução mais sugerida, e que já vem sendo adotada em outros trechos de Mata Atlântica no Brasil, é a criação dos “corredores ecológicos” – faixas de florestas replantadas conectando dois ou mais fragmentos, geralmente na margem de cursos d’água. Além de protegerem contra o assoreamento dos rios, as matas ciliares com a largura adequada são usadas por animais das florestas, muitos deles dispersores de sementes, como caminho para transitarem entre os fragmentos. “O corredor também mantém os insetos, pássaros e morcegos, que fazem a polinização”, explica Moraes.
O isolamento também pode ser quebrado por pequenos bosques entre os fragmentos, como Sebbenn sugeriu após estudar fragmentos nativos de araucárias no Paraná. “Naquele caso, dois trechos separados por dez quilômetros de distância poderiam ser interligados com fragmentos de 2 hectares a cada 2 quilômetros entre eles”, explica. “Tem gente que pensa que fragmentos pequenos de cinco ou dez hectares não fazem falta, mas não é assim; eles podem servir como trampolins.”
Fruto de capitão-do-campo, com forma ideal para ação do vento. (Foto: Guilherme Gomes / Unesp Ciência)
Tanto corredores quanto trampolins estão previstos por lei desde 1965. “Se o Código Florestal [que está sendo revisado no Congresso] tivesse sido respeitado, você não estaria fazendo essa reportagem”, diz. “As florestas estariam interligadas, teríamos um monte de animais ainda [realizando a dispersão de pólen e sementes] e as árvores crescendo fortes e saudáveis”, lamenta o pesquisador.
Os estudos de variedade genética de Moraes e Sebbenn servem de alerta para a plantação de novos corredores e trampolins. “Não adianta coletar milhares de sementes em uma árvore na estrada, fazer mudas e plantar em uma área”, lembra Moraes. Isso faria com que todo o novo bosque fosse composto de irmãos e meio-irmãos, podendo muito rapidamente sucumbir. “Para fundar uma população de árvores viáveis para o futuro é preciso coletar sementes com o menor grau de parentesco possível”, recomenda Sebbenn.
Pedro Brancalion, engenheiro agrônomo da UFSCar, especialista em ecologia de restauração, defende que os estudos também podem ajudar no “enriquecimento genético”. Ele propõe que sejam plantadas mudas em um fragmento vindas de sementes de outros, simulando o que acontecia quando a mata era contínua, dando assim um novo “fôlego genético” às populações
Mata ciliar plantada pelo agrônomo Mário Moraes em 1986, na Fazenda de Ensino, Pesquisa e Extensão (Fepe). O local era um arrozal abandonado em Ilha Solteira. (Foto: Guilherme Gomes / Unesp Ciência)
Se a primeira coisa que Moraes fez questão de mostrar à reportagem foi o solitário capitão-do-campo na porteira da Fepe, a última é um de seus orgulhos, a mata ciliar da fazenda à margem da represa da usina. Onde havia um arrozal abandonado em 1986, hoje fica uma floresta que até parece nativa. Segundo o agrônomo, essa mata ciliar e seus testes de progênies estão funcionando como corredores entre fragmentos originais da região. “A tecnologia para instalar os corredores existe, falta apenas vontade política.”
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“Unesp Ciência” é uma publicação da Universidade Estadual Paulista que traz reportagens sobre os grandes temas da ciência mundial e nacional e sobre as pesquisas mais relevantes que estão sendo realizadas na instituição, em todas as áreas do conhecimento. 

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