domingo, agosto 29, 2010

Uma doutrina por trás da censura

Uma doutrina por trás da censura

Eugenio Bucci
Na semana passada, um tribunal venezuelano proibiu os jornais do país de publicarem fotografias de vítimas de assassinatos. O fato foi noticiado no Brasil com bastante destaque, mas os fundamentos que estão por trás da medida não foram bem explicados. O assunto merece menos alarmismo e um pouco mais de atenção.
O episódio é sintoma da precoce degeneração de uma doutrina que subordinou a comunicação social aos ditames da segurança da pátria e que, levada ao extremo, vem conferindo ao Estado a função de zelar pela qualidade do jornalismo. A censura às fotos, em si, é patética e caricata, mas a doutrina que a inspira ainda preocupa.
Por certo, já se tornou ocioso protestar contra o autoritarismo de Hugo Chávez, que sucumbe aos seus defeitos ao ritmo que se distancia de suas promessas; em nome de aspirações coletivas, muitas delas legítimas, o governante montou para si mesmo um regime avesso às críticas e à renovação, adepto de militarismos e do culto à personalidade, que vai gerando infelicidade, medo e fracassos. Não há muito que fazer em relação a isso, a não ser lamentar. Mas a origem e os desdobramentos daquela doutrina autoritária, que ainda ilude entusiastas em todo o continente, isso é preciso entender com mais profundidade. É preciso aprender com a experiência, enfim.
A pedra angular dessa doutrina pode ser lida na Constituição da República Bolivariana da Venezuela, de 1999. O artigo 58, sob o disfarce de condenar expressamente a censura, veio para consagrar as razões mesmas da censura. Uma contradição involuntária do legislador apressado? Não: o artigo 58 é isso mesmo, um truque para autorizar a intervenção do Estado na imprensa.
Diz o texto: “(…) Toda persona tiene derecho a la información oportuna, veraz e imparcial, sin censura, de acuerdo con los principios de esta Constitución, así como a la réplica y rectificación cuando se vea afectada directamente por informaciones inexactas o agraviantes. (…)”
À primeira leitura, tudo bem. Além de repelir a censura, esse artigo enaltece o direito de todos à informação “oportuna, veraz e imparcial”. Nada nessa ideia parece impróprio, nada parece errado.
Nada a não ser aquilo que o artigo não diz que diz. Com seu palavreado épico, valente, próprio de uma Constituição que se propõe a “refundar” uma República “protagônica”, o texto contém uma armadilha essencial. Ao afirmar o direito de todos à informação “oportuna, veraz e imparcial”, lança suspeitas sobre o direito que todas as pessoas também têm às informações que, na opinião das autoridades, talvez sejam de veracidade duvidosa, inoportunas e nem tão imparciais assim. Com sua malícia retórica, a Constituição venezuelana põe no ar uma dúvida: quem é que vai dizer se a informação é “oportuna, veraz e imparcial”? O juiz? O Poder Executivo? A polícia?
A tradição democrática ensina que isso não é papel do Estado. A célebre Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que impediu os congressistas de legislarem contra a liberdade de imprensa, data de 1791. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da França, com sua defesa da livre comunicação das ideias como um dos direitos “mais preciosos” do homem, é de 1789. Naquela época, tanto na América como na Europa, praticamente inexistiam jornais equilibrados, desapaixonados, imparciais, oportunos, etc. Na América, havia publicações abertamente militantes, partidárias, que não hesitavam em recorrer à calúnia sanguinária. Em Paris, os filósofos e seus devezenquandários não redigiam noticiários isentos; empenhavam-se no proselitismo e na apologia do novo regime, que celebrava o individualismo, a propriedade privada e a guilhotina.
A História ensina que, nos Estados Unidos e na França, a conquista da liberdade de imprensa não veio para premiar jornalistas bem comportados, mas para garantir ao cidadão o direito de dizer o que bem entende, no tempo que quiser. A liberdade não foi o coroamento da ética jornalística, mas o seu pré-requisito: a ética de imprensa só se pode desenvolver em liberdade. Com o tempo, o jornalismo melhorou, ao menos um pouco, e a democracia se aperfeiçoou, estabelecendo formas de punir os excessos e os abusos da liberdade. Mas, atenção, o julgamento e a punição dos erros ocorrem depois que os erros são publicados; o direito fundamental que todos temos de publicar aquilo que pensamos não pode ser violado, não pode sofrer cerceamentos por antecipação.
O artigo 58 da Constituição Bolivariana é contra essa conquista da humanidade – que veio com o liberalismo, é verdade, mas se firmou como direito de todas as pessoas, sejam elas de direita ou de esquerda, tanto faz. O artigo 58 esconde a conquista desse direito universal. As pessoas não têm direito apenas à informação “oportuna, veraz e imparcial”, mas também a notícias que, na opinião das autoridades, talvez não atendam a esses requisitos. Elas têm o direito de ler publicações que juram ter entrevistado duendes e extraterrestres, ou panfletos declaradamente parciais, principistas e inoportunos. Não pode caber ao Estado – por nenhum dos seus três Poderes – dizer se a informação é ou não é “veraz” ou “imparcial”. Cabe a cada cidadão julgar isso por si mesmo, isso sim.
Quando um veículo jornalístico, livre de ingerências governamentais, assume compromisso com a informação “oportuna, veraz e imparcial”, isso até pode ser uma boa notícia (se não for puro fingimento). Agora, quando o Congresso Nacional aprova na sua Lei Maior a separação doutrinária entre a informação “oportuna, veraz e imparcial” e as outras informações, aí a notícia é tenebrosa. E dá no que vem dando.
A lei não melhora o jornalismo, mas pode piorá-lo, assim como pode embrutecer o Estado e infernizar a vida em sociedade. A Venezuela que o diga.
Fonte: Jornal “O Estado de S. Paulo” – 26/08/10

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