quinta-feira, outubro 28, 2010

Modos de saber

Modos de saber
Francisco Bosco – O Globo – Segundo Caderno
Budistas eminentes são sábios; estoicos são sábios. Poetas raramente são sábios
Na época em que fiz graduação, tive um professor muito estudioso e brilhante. Algumas pessoas diziam dele que era um erudito, ao que ele reagia com certa irritação: “As pessoas não fazem ideia do que é um erudito!” Essa frase nunca saiu da minha cabeça. Desde então tento pensar o que é um erudito. Vou partir dessa figura para esboçar aqui uma tipologia a delinear diferentes modos de saber: o do erudito, o do sábio, e, faute de mieux, o do inculto.
A etimologia não nos ajuda, pois erudito vem do latim “erudire”, que significa tirar da rudeza, isto é, instruir, formar, aperfeiçoar. A princípio, esses significados se confundem com os dos demais tipos acima referidos.
Recorrerei então a filósofos.
Schoppenhauer não via com bons olhos a figura do erudito, que é, segundo ele, alguém que “leu até ficar estúpido”. O autor de “O mundo como vontade e representação” desconfiava da leitura: “Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: só repetimos seu processo mental. Trata-se de um caso semelhante ao do aluno que, ao aprender a escrever, traça com a pena as linhas que o professor fez com o lápis.” Daí se segue que “aquele que lê muito e quase o dia inteiro (...) perde, paulatinamente, a capacidade de pensar por conta própria, como quem sempre anda a cavalo acaba esquecendo como se anda a pé”. Seria este o caso do erudito.
Essa concepção de leitura deve ser relativizada.
Não se lê, necessariamente, de modo passivo, deixando-se pensar pelo outro (a rigor, isso nem é possível).
Mas o risco que ela detecta é verdadeiro. Sua perspectiva é corrigida e aprofundada por Nietzsche, que devia conhecer a passagem citada para escrever a seguinte: “O erudito que no fundo não faz senão ‘revirar’ livros — o filólogo uns 200 por dia, em cálculo modesto — acaba por perder totalmente a faculdade de pensar por si.” Nietzsche então retoma a expressão depreciativa de Schoppenhauer, dando a ela uma dimensão fisiológica, como é de seu feitio: “Isso vi com meus olhos: naturezas dotadas, de constituição rica e livre, ‘lidas à ruína’, já aos 30 anos.” Para o autor de “Ecce homo”, a leitura também deve ser vista com desconfiança.
Deve-se tanto saber ler quanto saber não ler: “Nunca refleti sobre problemas que não o são — não me desperdicei.” O problema, portanto, não é da leitura, mas do modo como se a pratica.
Para os dois filósofos evocados, o erudito é uma espécie de leitor estéril, sobrecarregado pelo próprio conhecimento.
De minha parte, entendo haver outro traço distintivo do erudito: ele é aquele que representa o conhecimento como uma totalidade possível, ou que ao menos deseja essa totalidade, mesmo se for consciente do fracasso a que esse desejo está condenado. O erudito é um sujeito que não fez a castração do saber. Ora, mais do que em qualquer tempo, o saber hoje é evidentemente incompleto.
Diz-se que na Antiguidade um leitor que tivesse lido cem livros era considerado um sábio; cem livros é, hoje, o que um intelectual estudioso pode ler num ano — com isso logrando apenas multiplicar sua ignorância.
Daí que o erudito tenha um espírito com certa vocação matemática, exata, classificadora.
O erudito orienta suas leituras por campos de saber, que ele sonha, em vão, dominar, e organiza sua biblioteca por ordem alfabética.
A comédia da erudição, na literatura, é o romance “Bouvard et Pécuchet”, de Flaubert. Os dois personagens são tomados por um espírito erudito de conhecimento, mas, de saber em saber, só acumulam incompletudes, perplexidades e desastres.
Ressalvo que existem, a meu ver, eruditos inventivos, inteligentes. Na literatura, Borges talvez seja um deles.
Já o sábio é mais simples.
Sábio é aquele para quem o saber deve ser necessariamente transitivo — e saudável.
A figura do sábio é indissociável do equilíbrio.
Discordo da famosa frase de Blake: “O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.” O excesso pode levar, sim, ao saber, mas a um saber que não é sabedoria.
O sábio não é excessivo.
Não sabe mais do que deve para manter seu equilíbrio, sua saúde.
A sabedoria está ligada a uma técnica existencial de controle do desejo, evitando os sofrimentos dele decorrentes. Budistas eminentes são sábios; estoicos são sábios. Poetas raramente são sábios.
Há, por fim, o que chamei, imperfeitamente, de modo do inculto. Deleuze confessava assustar-se com pessoas cultas: “Eles sabem tudo, sabem a História da Itália, da Renascença, sabem geografia do Polo Norte. (...) É assustador.” Dizia, de si próprio, não ser culto, por não ter “saber de reserva”.
Quando ele queria saber alguma coisa, estudava ad hoc, e depois de escrever esquecia.
Isto é, não cultivava conhecimento. Só lhe restava um saber por dentro, um saber de cor, como seu saber de Espinoza: “Pois Espinoza está no meu coração, não o esqueço, é meu coração, não minha cabeça.” Identifico-me com a postura de Deleuze. Tenho pouco saber de reserva; interesso-me mais por questões do que por autores; estudo apenas o suficiente para me propiciar uma compreensão do que estou buscando; não tenho nem sequer um território discursivo (não posso me dizer professor de Teoria da Literatura ou de uma literatura qualquer, por exemplo), sendo uma espécie de nômade indisciplinado, mais do que transdisciplinar.
Como Deleuze, também só sei o que sei de cor, o que entrou na minha vida de modo a me orientar cotidianamente nas minhas escolhas morais, intelectuais e existenciais. Essencialmente, um inculto.

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