quinta-feira, outubro 28, 2010

O território de Adélia - Karla Monteiro

O território de Adélia - Karla Monteiro
O Globo – Segundo Caderno – Reportagem de Capa
Após um hiato de quase dez anos,
a escritora mineira volta a publicar
suas poesias e afirma que é
nas letras que encontra alegria, consolo e esperança
O jejum é de quase uma década.
O último livro de poesia, “Oráculos de maio”, saiu em 1999. E o derradeiro de prosa, “Filandras”, em 2001. Na segunda-feira à noite, na Livraria da Travessa do Leblon, Adélia Prado deu de novo as caras, com “A duração do dia” (Record), que ficou cozinhando, em fogo brando, por dez anos. Encontramos a escritora horas antes do lançamento, escoltada pelo marido, o bancário aposentado e apaixonado José de Freitas. Os dois não se largam. São 53 anos de casamento, cinco filhos e nove netos.
Em pessoa, Adélia é a sua escrita: simplicidade e religiosidade, sabedoria e busca.
Durante duas horas de conversa, ela pediu algumas vezes para não botar no jornal isso ou aquilo. Tem pavor de parecer “metida”.
Mas, num momento do papo, a senhora de 75 anos, cabelos grisalhos, elegância nata, soltou um segredo impossível de guardar.
Anda lendo física quântica. E descobriu uma coisa transformadora: a física a consola mais do que a teologia.
— Eu não quero que coloque essas coisas.
É chato. Mas, de verdade mesmo, estou lendo física quântica. Quando iniciei, eu falei: “Gente, mas isso é mais consolador do que a teologia...” Física é a própria poesia — diz, com o sotaque mineiro saltando a cada frase. — As pessoas diziam de mim no começo: “Dona de casa, mãe de cinco filhos, casada com bancário, pão de queijo... Essa mulher escreve?” Mas eu tinha certeza do que estava fazendo. Escrever me deu alegria, consolo, esperança. É o território que me protege, que me dá sentido.
Para chegar ao Rio, o casal enfrentou oito horas de ônibus. Partiu de Divinópolis, no centro-oeste de Minas, uma cidade de 200 mil habitantes, onde Adélia nasceu e sempre viveu. A escritora morre de medo de avião. E, atualmente, só deixa as montanhas quando o caso é sério. A ocasião merecia.
“A duração do dia” foi um processo vagaroso.
Adélia não é o tipo de escritora que tem um método, uma rotina. Não consegue trabalhar todos os dias. Só escreve quando “a coisa vem”. Quando fala da sua escrita, ela invariavelmente usa o verbo “vir”. O livro não “vinha”. De repente, segundo conta, a obra foi se formando, ganhou unidade, corpo e “até um nome”. Aí era hora de publicar.
Adélia só vai lançar no Rio e em Divinópolis.
Não pretende fazer uma turnê rodoviária.
Já fez várias — e até encarou muito avião para lançamentos fora do Brasil.
Ao todo, contabiliza 18 livros (e um prêmio Jabuti): seis de prosa, seis de poesia e seis antologias.
— Acho que ninguém explica a forma como se escreve poesia, né? Acho que há um impulso inicial, interno, sobre algo que se quer dizer, e quer se dizer em forma de poesia.
A partir daí você tenta escrever. Nem sempre você é feliz. Às vezes, o poema não se resolve. Eu não sei falar sobre isso, não — reclama. mdash; Gosto mais de escrever poesia do que prosa. E digo que o objetivo da prosa é a experiência poética. Se não, eu acho, a prosa não sabe a que veio. Toda arte tem uma finalidade só: tocar aquele nervo.
Na prosa, você não narra porque narra. Alguma coisa tem que se mover.
A atriz Cássia Kiss é movida a Adélia Prado.
Na segunda-feira, ela estava lá, no lançamento de “A duração do dia”, fazendo leituras dos poemas. Cássia a conheceu no corpo de Fernanda Montenegro, na peça “Dona doida, um interlúdio”, baseada em textos da autora. A montagem, de 1987, sob a direção de Naum Alves de Souza, arrebentou, com prêmios nacionais e internacionais.
— Fiquei muito impressionada com a beleza da Adélia: simples, religiosa e ao mesmo tempo repleta de questões. Ela é muito distante de qualquer resumo que se possa fazer dela. O que traz na obra é impressionante.
Estou trabalhando há anos em um projeto para teatro baseado na prosa da Adélia. A poesia, a Fernanda já fez maravilhosamente — diz Cássia. mdash; Do novo livro, eu gosto muito. Eu gosto da Adélia. E ponto.
Eu sinto a poesia dela. É preciso ler e reler obsessivamente para se chegar a um pedacinho de Adélia Prado.
Os preciosos escritos atravessaram as montanhas em 1975, muito antes de Fernanda Montenegro descobri-los e projetar a poeta mineira nacionalmente. No dia 9 de outubro daquele ano, Carlos Drummond de Andrade publicou uma crônica no “Jornal do Brasil” chamando a atenção para o trabalho ainda inédito da escritora. No ano seguinte, o lançamento de “Bagagem”, o primeiro livro, atraiu até o presidente Juscelino Kubitschek. Todo mundo estava lá: Antonio Houaiss, Rachel Jardim, Clarice Lispector, Nélida Piñon... Entre os presentes, o escritor Affonso Romano de Sant’Anna, o crítico da “Veja” que havia apresentado a poesia de Adélia a Drummond.
Affonso Romano tem muitas histórias de Adélia para contar. Numa tarde de 1975, na redação da “Veja”, ele recebeu um pacote com poesias manuscritas, em folhas de caderno, vindas de Divinópolis. Como bom mineiro, foi ler a conterrânea. Após a leitura, ligou para Drummond correndo, cheio de entusiamo.
E, anos depois, também foi ele quem a apresentou a Fernanda Montenegro.
— Ler poesia é como procurar ouro na bateia. Quando li Adélia senti que uma coisa rara tinha acontecido. A linguagem era simples, mas fortemente metafórica. Ela recuperava o telúrico de Guimarães Rosa, o discurso direto de Drummond. E trazia uma voz feminina surpreendente — conta Affonso Romano. — O lançamento de “Bagagem” foi um acontecimento. Lembrome de uma festa para a Adélia na cobertura do Rubem Braga. Ela era, e ainda é, tão simples que pediu autógrafos na festa dela. Hoje, atrai quatro mil pessoas na fila de autógrafos da Flip.
Não por acaso, Affonso Romano e Drummond foram os primeiros a dar atenção à poeta.
Quem conhece o interior de Minas entende essa alma. Ela nasceu numa família de 11 irmãos, filha de um ferroviário.
Perdeu a mãe com 14 anos. Divinópolis, como qualquer cidadela mineira, era aquele pranto de fé, de tradição e de afeto. E Adélia gostava de igreja. Mesmo menina, conseguia ouvir além do discurso doutrinário.
Regozijava-se na beleza da poesia sacra, na liturgia. Aos poucos, diz que foi entendendo as questões existenciais nos ensinamentos de Jesus.
Aos 22 anos anos, casou-se com José, um “partidão do Banco do Brasil, o sonho de toda moça e de todo pai de moça”.
Depois de uma carreira “chinfrim” como professora, cinco filhos e um curso superior de Filosofia, descobriu-se, enfim, escritora, aos 40 anos: — Eu sempre li muito, gostava de ler, a ponto de preocupar a minha madrasta. Ela dizia: “Quando você se casar, eu não sei como vai ser.” A poesia é a face da beleza divina, a pegada de Deus na brutalidade das coisas.

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