domingo, maio 23, 2010

Dilemas da vida artificial

Dilemas da vida artificial
Criação de célula sintética abre debate sobre biossegurança, ética e religião
Roberta Jansen

Um dia depois do anúncio histórico da criação de vida artificial no laboratório do geneticista Craig Venter - o mesmo responsável pela decodificação do genoma humano em 2001 -, o presidente dos EUA, Barack Obama, pediu a seus conselheiros especializados em biotecnologia para analisarem as consequências e as implicações da nova técnica. E elas não são poucas. Da segurança do uso às implicações filosóficas de se gerar vida em laboratório, a polêmica está apenas começando.
A apresentação da primeira célula sintética inaugura uma nova era da biologia, com promissoras perspectivas, como a criação de micro-organismos programados para funções específicas de produzir vacinas e combustível, por exemplo. Mas gera também apreensão em especialistas em bioética e biossegurança, dado o seu potencial praticamente ilimitado, além de desafiar as noções religiosas sobre o início da vida. Uma tecnologia que traz a perspectiva de criar vida a partir, basicamente, do zero, e de alterar formas de vida naturais pode ter consequências perigosas em mãos de terroristas, por exemplo.

Venter defende nova legislação
O próprio Venter, ao fazer o anúncio na quinta-feira, disse que consultou muitos especialistas em ética antes de começar sua pesquisa e que informou à Casa Branca sobre o estudo, devido às implicações de segurança, já que a técnica poderia ser usada para sintetizar armas biológicas.
Em carta enviada ontem à Comissão Presidencial para o Estudo de Questões Bioéticas, Obama pediu para que o grupo considere "o potencial médico, ambiental, de segurança e outros benefícios desse campo de pesquisa, assim como riscos potenciais para a saúde, segurança e outros". Além disso, a comissão deve apontar as apropriadas fronteiras éticas da nova técnica e traçar recomendações para minimizar os riscos identificados. Nos EUA, como no Brasil, a legislação não contempla a criação de vida artificial, nem a chamada biologia sintética.
- O tema pede uma regulamentação porque é um tipo de risco que precisa ser avaliado, não só porque pode ser usado como bioarma, mas também pelos potenciais riscos ambientais e à saúde humana - afirma o coordenador do curso de Biossegurança da Fiocruz, Silvio Valle. - Essa tecnologia, associada à nanotecnologia, por exemplo, pode criar, num futuro não muito distante, a era dos biohackers.
Para Valle, a biologia sintética precisa de uma normatização urgentemente, não só nos EUA, mas também no Brasil. Para ele, a tecnologia é muito acessível e é preciso haver mais rigor.
- Hoje, no país, não temos essa legislação, nem um órgão com a legitimidade para analisar a biologia sintética - sustenta. - A atual Lei de Biossegurança não contempla essas questões.
Integrante do Comitê Internacional de Bioética da Unesco, Volnei Garrafa concorda com Valle:
- A busca pelo conhecimento deve ser livre; a obrigação da ciência é ser a parideira do futuro - sustenta. - Mas a construção desses novos modelos e sua utilização devem ser rigorosamente controladas. Seu uso deve ser exclusivamente para pesquisa.
O próprio Venter se declarou preocupado com o uso de sua tecnologia e defende a criação de normas específicas para o setor.
- Temos que estar preocupados - afirmou o geneticista em entrevista ao "Independent". - Trata-se de uma tecnologia poderosa e já propus novas regulamentações no setor porque acho que as atuais não são suficientes. Como somos os responsáveis pela tecnologia, queremos que todo o possível seja feito para evitar seu uso errado.

Excluindo Deus da origem da vida
Para muitos, Venter não criou "vida artificial", como aponta um artigo publicado ontem no "Independent". "Ainda falta muito para isso", sustenta o texto do jornal britânico. O geneticista Sérgio Danilo Penna é da mesma opinião.
- Não houve criação de vida - afirmou. - Ele simplesmente trocou o genoma de uma célula viva por um genoma artificial. A vida é uma propriedade da célula e não do genoma.

Mas a polêmica vai além.
Ao criar um organismo que se autorreplica "com quatro garrafas de produtos químicos e um sintetizador, a partir de informações arquivadas num computador", como anunciou, Venter chegou muito perto de decifrar as origens da vida e dessacralizou a questão, abrindo outra polêmica, desta vez filosófica e religiosa.
Autoridades da Igreja Católica disseram ontem que a criação da primeira célula artificial em laboratório pode ser algo positivo, se usado corretamente. Mas advertiram que apenas Deus cria a vida.
- Vemos a ciência com grande interesse, porém acreditamos sobretudo no significado que se deve dar à vida - declarou o especialista em bioética do Vaticano, Rino Fisichella, em entrevista à rede italiana RAI. - Só podemos chegar a conclusão de que necessitamos de Deus.
Até hoje, um dos maiores desafios da ciência é revelar como a vida teria começado no planeta. Em outras palavras, revelar como matéria orgânica surgiu a partir de inorgânica. Várias experiências tentaram replicar o evento sem sucesso total, deixando um espaço para os religiosos atribuírem a Deus o feito.
A experiência de Venter não explicou como a vida começou. Mas chegou bem perto disso, ao mostrar que, sob determinadas condições, fragmentos químicos podem se unir para formar vida. "Venter nos transformou em Deus?" é o título do artigo publicado ontem no site do jornal britânico "Guardian", pelo comentarista Andrew Brown.
Para o especialista em bioética da Universidade da Pensilvânia Arthur Caplan, no mínimo, Venter excluiu Deus da equação da vida.
- Diziam que só Deus poderia criar a vida. Por séculos, sempre disseram que não era possível entender a vida, que ela era algo único, especial, cuja explicação estaria além da ciência. Aristóteles e outros grandes pensadores diziam que a vida era uma força especial - frisou Caplan, que assina um artigo sobre o tema na "Nature". - A experiência de Venter mostrou que isso não é verdade. Ela revelou que, com determinadas substâncias químicas, sob certa situação, a vida pode surgir. Do ponto de vista filosófico isso é muito importante. Muitos hão de perguntar: então a vida se reduz a uma explicação química reducionista? A resposta é sim.
Mas isso não significa, destacou, que a vida não seja maravilhosa.
- Apenas que não é mágica nesse sentido. 


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