segunda-feira, maio 03, 2010

Sonhos roubados

Sonhos roubados
ANNA FLORA WERNECK  - O Globo - 03/05/2010
Raríssimas são as obras que trabalham com o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes de forma qualificada, realista e popular. Sem ser superficial, nem sensacionalista. O filme "Sonhos roubados" atinge esse objetivo. 
Baseado no livro "As meninas da esquina", da jornalista Eliane Trindade, "Sonhos roubados" aborda, com sensibilidade e cuidado, a história de três meninas e seus anseios, envolvidas em situações de exploração sexual como forma de sobrevivência e satisfação de desejos de consumo. Ao mesmo tempo, mostra histórias de amizade, superação e afeto. Foi empolgante conhecer, em 2008, a proposta da cineasta Sandra Werneck de transformar o livro num longa-metragem, pois Sandra traz um olhar atencioso e preocupado sobre o tema, tendo dirigido, em 2005 o documentário "Meninas", que aborda a gravidez na adolescência. 
A trajetória das personagens Jessica, Sabrina e Daiane, retratada em "Sonhos roubados", não é estranha a tantos adolescentes nas periferias. São realidades marcadas pela negligência, carência, exclusão, desagregação familiar, evasão escolar, "drogadição", que se misturam à falta de perspectivas. Neste cenário arrasador, muitos se tornam vítimas do abuso e da exploração sexual. E muitos deles passam a enxergar e a aceitar a prostituição como uma possível saída, uma estratégia de resiliência. 
A violência sexual pressupõe o abuso do poder onde crianças e adolescentes são usados para gratificação sexual de adultos, sendo induzidos ou forçados a práticas sexuais. O abuso sexual é qualquer ato em que adultos submetem menores a situações de estimulação ou satisfação sexual, impostas pela força física, pela ameaça ou pela sedução. Já a exploração sexual pressupõe uma relação de mercantilização, onde o sexo é fruto de uma troca, seja financeira, de favores ou presentes. A violência sexual interfere diretamente no desenvolvimento da sexualidade e nas dimensões psicossociais, causando danos muitas vezes irreversíveis. 
Esses fenômenos não estão restritos às fronteiras de um país, tampouco a uma classe social. Também não podem se traduzir em relações de causa e efeito. São multicausais que compreendem dimensões culturais (como machismo e erotização do corpo de crianças pela mídia), sociais (como a valorização excessiva do consumo) e econômicas (como a pobreza e a desigualdade). Infelizmente, estas mazelas encontram no Brasil um terreno fértil para sua proliferação, pois a legislação não é cumprida com rigor, há corrupção até mesmo nas instâncias policiais e judiciais e arrastamos um histórico de violência endêmica (de gênero, classe, raça e geração). Quase metade das crianças e adolescentes brasileiros está exposta a uma imensa vulnerabilidade social. 
Essa é a situação estampada pelas personagens de "Sonhos roubados", que se envolvem com a exploração sexual. Mas não unicamente como vítimas. O filme mostra a autonomia com que as meninas desenham suas próprias estórias. Por um lado, sofrendo estigmatização da sociedade pela escolha deste caminho, por outro satisfazendo a necessidade de serem vistas, reconhecidas e de terem condições econômicas para arcarem com seus desejos de consumo ou lazer. Essa situação tem seu outro lado, o da demanda de homens por sexo com menores de idade como marca de sua virilidade. Ou mesmo de cafetões que, ao enxergarem as adolescentes nessa situação, enxergam uma possibilidade de lucro. 
A complexidade e gravidade do fenômeno requerem ações de enfrentamento igualmente complexas e capazes de envolver os mais diferentes setores. As ações precisam ir além da redução da pobreza, da garantia de acesso à saúde, educação, lazer ou mesmo manutenção do convívio sócio-familiar. É necessário também enfrentar questões ideológicas, como racismo, machismo e homofobia para alcançar resultados mais efetivos. O cinema pode e deve colocar sua força de entretenimento, polemização e potencial de mídia a favor da ampla discussão do tema. E "Sonhos roubados" veio cumprir um papel exemplar neste sentido. 
ANNA FLORA WERNECK é coordenadora da organização não governamental Childhood Brasil.

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