segunda-feira, junho 14, 2010

O direito socioafetivo em ascensão

O direito socioafetivo em ascensão
Siro Darlan, Jornal do Brasil
RIO - Decisões reiteradas do Superior Tribunal de Justiça têm consagrado uma nova modalidade de direito que muito em breve haverá de prevalecer nas relações familiares. A nova conceituação ampla e irrestrita consagrada no artigo 26 do texto constitucional tem sido o luminar dessa nova doutrina. Sabe-se que nenhuma relação familiar merece essa conceituação se não estiver envolvida pelo manto do afeto.
O exemplo clássico de família, a Sagrada Família Jesus, Maria e José, é exemplo de união socioafetiva que a civilização romano cristã nunca enalteceu de forma destacada, uma vez que a formação daquela família aconteceu eminentemente através das relações afetivas. José não era casado com Maria e não foi o pai de Jesus, logo a formação dessa família cristã clássica deu-se não pelos laços consanguíneos e sim pela união afetiva de seus membros.
A ministra Nancy Andrighi em voto brilhante decidiu confirmar a adoção de uma criança pelo padrasto com fundamento no artigo 41, § 1º, do ECA que permite ao interessado invocar o legítimo interesse para a destituição do poder familiar do pai biológico, arvorado na convivência familiar, ligada, essencialmente, à paternidade social, ou seja, à socioafetividade, que representa, conforme ensina Tânia da Silva Pereira, um convívio de carinho e participação no desenvolvimento e formação da criança, sem a concorrência do vínculo biológico (Direito da criança e do adolescente - uma proposta interdisciplinar - 2ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pág. 735).
Afirmou a ministra que o alicerce do pedido de adoção residiu no estabelecimento de uma relação afetiva mantida entre o padrasto e a criança, em decorrência de ter formado verdadeira entidade familiar com a mulher e a adotanda, que se somara também a uma filha comum do casal.
A riqueza desse entendimento permite uma dilação interpretativa para considerar que em outra decisão judicial recente em que havia sido criada uma relação de afeto entre o padrasto que juntamente com a mãe criaram o pequeno Sean como filho comum e, ainda, geraram outra criança filha comum do casal, o afastamento de Sean pode ser considerado uma violência contra as relações afetivas que geraram uma nova concepção de família.
  A ministra destacou ainda no voto que, “sob essa perspectiva, o cuidado, na lição de Leonardo Boff, representa uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento com o outro; entra na natureza e na constituição do ser humano. O modo de ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano. Sem cuidado ele deixa de ser humano. Se não receber cuidado desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se, definha, perde sentido e morre. Se, ao largo da vida, não fizer com cuidado tudo o que empreender, acabará por prejudicar a si mesmo por destruir o que estiver à sua volta. Por isso o cuidado deve ser entendido na linha da essência humana” (apud Pereira, Tânia da Silva. Op. cit. pág. 58).

Desde que a criança e o adolescente passaram a ser sujeitos de direitos a ter uma família e com fundamento na paternidade responsável, “o poder familiar é instituído no interesse dos filhos e da família, não em proveito dos genitores” e com base nessa premissa deve ser analisada sua permanência ou destituição. Citando Laurent, “o poder do pai e da mãe não é outra coisa senão proteção e direção” (Principes de Droit Civil Français, 4/350), segundo as balizas do direito de cuidado a envolver a criança e o adolescente.
Em outra decisão histórica, a mesma ministra Nancy Andrighi entendeu pela prevalência da maternidade socioafetiva cujo reconhecimento se deu em caso em que uma criança recém-nascida havia sido registrada como filha, sem seguir os procedimentos legais da adoção. Ao falecer a mãe, havia legado 66% de seus bens para a menina, então com 9 anos, o que levou a irmã mais velha a pleitear a anulação do registro de nascimento.
  Em seu voto, a ministra entendeu que não havia como se desfazer uma sociedade familiar construída e reconhecida socialmente com base no afeto. Desse modo entendeu o STJque a filiação socioafetiva, ainda que em descompasso com os regramentos jurídicos e com a verdade biológica, deve prevalecer. Tais decisões levarão em breve a outras que poderão desconstituir até mesmo sociedades familiares formadas por laços consanguíneos que não estiverem emoldurados pelos laços de afeto. Sabe-se que em muitas famílias biológicas reinam os mais diversos interesses econômicos, sociais, mas não há afeto que é o verdadeiro elo que deve unir as pessoas em família.

Tem sido esse elo afetivo que tem levado os tribunais a reconhecer as mais variadas composições familiares desde o concubinato, as uniões estáveis, as uniões homoafetivas e outras tantas que surgirem já que, como leciona a professora Tânia da Silva Pereira, não há na Constituição um modelo preferencial de família e o conceito não é exclusivo, e sim inclusivo. Os autores enumeram um mosaico de modalidades de famílias possíveis criadas pelas mais diversas situações, tais como a família nuclear, que inclui duas gerações, com filhos biológicos; famílias extensas, com três ou quatro gerações; famílias adotivas temporárias; famílias adotivas birraciais ou multirraciais; casais; famílias monoparentais, chefiadas por pai ou mãe; casais homossexuais com ou sem crianças; famílias reconstituídas depois do divórcio; várias pessoas vivendo juntas, sem laços legais mas com forte compromisso mútuo. Todas essas modalidades acobertadas pelo manto do afeto constituem verdadeiramente famílias.

Diante dessa complexidade e variedade de modalidades de arranjos familiares impõe-se uma maior especialização dos magistrados que devem pautar-se em todos os casos e circunstâncias, no princípio do melhor interesse da criança, no princípio da não discriminação e no direito da criança e do adolescente de serem ouvidos e sua manifestação considerada. Urge ainda que os tribunais atendam às recomendações do Conselho Nacional de Justiça de criação de equipes técnicas nas varas de família, infância, juventude e idoso e criação de câmaras especializadas nas matérias afins.

Siro Darlan, além de desembargador, é membro da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto dos Advogados do Brasil.
23:54 - 13/06/2010

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