terça-feira, setembro 07, 2010

Ai de mim, ai de ti, Haiti

Ai de mim, ai de ti, Haiti

CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA - Publicada em 06/09/2010 às 16h56m – O Globo

“Somos todos irmãos
Não porque seja o mesmo o sangue
Que no corpo levamos.
O que é o mesmo
É o modo como o derramamos”
Ferreira Gullar

Nenhum homem é uma ilha, repete-se. Mesmo uma ilha pode não ser uma ilha, digo. O ilhamento de um homem é tristeza; o de um povo, um perigo. A onda que arrasta o outro pode ser a mesma que me afogará amanhã. O que derruba alguém pode ser o anúncio do terremoto que me abaterá amanhã. O outro é aquele que passa antes, às vezes, o que poderá ser meu sofrimento depois. E, se assim não for, o sofrimento mesmo dele já é uma ferida que me dói.
O Haiti não é apenas uma ilha, linda ilha que, ao olhar que deito do sobrevoo em sua proximidade, me faz pensar que o céu derramou-se naquela amplidão. O Haiti é um povo em permanente estado de luta contra adversidades impostas pelos colonizadores de antes, o descaso, depois, e um certo sentido de comiseração, mais que de compaixão. É desse, no entanto, que todos nós precisamos.
Os revolucionários oitocentistas fizeram do azul a cor-símbolo da liberdade, ausência de limites. No azul intensíssimo do Caribe, a experiência haitiana mostra sinais de limites de variado matiz. Parece que ali o mar é sussurro permanente a lembrar que viver é preciso, navegar...
E segue o mundo surfando em águas nem sempre amenas, deslembrando-se de que a internacionalização das relações políticas põe à vista que estamos todos no mesmo barco. Não há sobreviventes isolados, ou, pelo menos, não há garantia de que, se uma parte do mundo for bem, obrigada, a outra pode ser desprezada.
Na mundialização econômica e política atual, nem ao menos uma ilha é uma ilha. Os que não sucumbimos em terremotos, nem dormimos sob o signo do medo dos ventos, somos iguais aos que não podem adormecer com calma. Como diria Sartre, como toda a humanidade, somos metade vítimas, metade culpados.
O Haiti é um povo ferido pela ganância insensata dos homens e pela revolta incompreensível da natureza. Melhor é saber que, mesmo poucos, muitos dos quais brasileiros, há quem esteja a ajudar, quando a solidariedade nem sempre atravessa a soleira da porta da maioria.
Os haitianos não parecem cansados de lutar. Seguem varrendo os destroços de construções arrasadas como quem ara a terra do que passou para dar espaço à semeadura nova. Parecem cultivar a certeza de que serão os jardineiros da safra que os alimentará no futuro.
Aprendi que, pessoal ou socialmente, felicidade não é destino, é construção. Se um homem não é uma ilha e uma ilha não é um isolamento humano, é imperioso que a construção ou a reconstrução seja plural. Se não for por benquerença, seja por sensatez: de mãos dadas a caminhada é mais fácil, mesmo quando os pés se esfolam pela aridez da trilha. E ai de mim, ai de ti, Haiti, se não estivermos juntos para construir o que queremos que venha. Pode ser, então, que a sorte afunde no azul intenso de um mar qualquer e que, assim afogada, ela faça-nos náufragos da aventura humana mais benfazeja.
CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA é ministra do Supremo Tribunal Federal.

Um comentário:

  1. Excelente o conteúdo textual, a técnica e a maneira clara de externar a preocupação com esse povo tão sofrido, nossos irmãos haitianos.
    Interessante seria se essa preocupação também se materializasse no trato de questões envolvendo os nossos irmãos brasileiros que foram condenados a encerrar o seu ciclo de vida da maneira mais indigna que um ser humano pode suportar.
    Reporto-me a questão que envolve os 8 mil aposentados que recebiam a complementação de suas aposentadorias pelo fundo de pensão do Instituto Aerus de Seguridade Social.
    A preocupação denotada pela excelentissima senhora ministra Carmen Lúcia, teria encaixe perfeito no caso Aerus.
    Pessoas com a faixa etária entre 65 e 80 anos morrendo de fome, doentes e sem condições de pagar pelos medicamentos necessários, alguns dando cabo da própeia vida e, pasmem, dois a três ôbitos semanais.
    Lamentavelmente, passou a ser "in" se preocupar com os acontecimentos externos e varrer para baixo do tapete o Endo-Social.
    Passou a ser uma praxe, o jurisdicionado brasileiro ter a lide sentenciada, na maioria das vezes, no túmulo.
    Mas, a preocupação com os acontecimentos externos dão mais visibilidade e espaços na mídia e rendem tijolos nos principais meios de comunicação do nosso, sem problemas, Brasil.
    Por fim, solidarizo-me com a dignissima ministra com a preocupação externada desse sofrido povo, sem, entretanto, deixar de me preocupar e estar atento com os nossos irmãos brasileiros, sexa e octagenários que estão sendo atirados na vala ainda vivos, sob os plácidos olhos da nossa tão atenta - com fatos externos - Corte Suprema.

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