quinta-feira, setembro 23, 2010
Simon Singh: "A lei não pode brecar a ciência"
Simon Singh: "A lei não pode brecar a ciência"
Acusado de difamar a medicina alternativa, o escritor compara a legislação inglesa à censura contra Galileu
MARCELA BUSCATO - Revista Época
O autor britânico Simon Singh defendeu seu doutorado na área de física das partículas. Escreveu livros sobre alguns dos assuntos mais complicados da ciência. Mas é na área jurídica que seu nome poderá ser lembrado. Singh desafiou a tradicional justiça inglesa. Em 2008, ele escreveu um artigo no jornal The Guardian criticando a quiropraxia, uma técnica que usa o alinhamento da coluna para tratar dores. A Associação Britânica de Quiropraxia se sentiu ofendida e invocou a lei antidifamação da Inglaterra, conhecida no mundo por ser mais favorável a quem reclama do que a quem se defende. Em abril, a associação retirou a queixa e o caso foi encerrado. O mesmo não aconteceu com a campanha internacional pela liberdade de expressão desencadeada por Singh. “A lei antidifamação da Inglaterra cerceia a liberdade de expressão no mundo inteiro”, diz.
ENTREVISTA - SIMON SINGH
QUEM É Escritor, jornalista e produtor de televisão especializado em ciências e matemática. Nasceu na Inglaterra, tem 46 anos, é casado e tem um filho
O QUE FEZ Defendeu seu doutorado em física experimental das partículas, pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra
O QUE PUBLICOU Escreveu livros de divulgação científica como Big bang, o livro dos códigos e O último teorema de Fermat (lançados no Brasil pela Editora Record)
ÉPOCA – O senhor se tornou símbolo de uma campanha contra a lei antidifamação da Inglaterra. Por que se envolveu nessa história? Simon Singh – A Associação Britânica de Quiropraxia me processou em 2008 por causa de meu artigo no jornal The Guardian. Em maio de 2009, tivemos uma audiência preliminar sobre o significado do artigo, e a decisão foi contrária a mim. A corte disse que eu tinha sido conscientemente desonesto ao insinuar que a Associação Britânica de Quiropraxia promovia, propositalmente, tratamentos que não funcionavam. Não escrevi com essa intenção e não quis dizer isso. Mas é muito difícil de provar. Resolvi apelar contra essa interpretação. Em 1º abril deste ano, houve uma nova audiência. A Justiça voltou atrás e julgou que o que eu havia escrito fora inconsequente, mas não desonesto. Duas semanas depois, em 15 de abril, a Associação Britânica de Quiropraxia desistiu de seguir com a ação.
ÉPOCA – Por que o caso gerou tamanha repercussão? Singh – Quando a associação entrou na Justiça, eu achava que tinha uma grande chance de ganhar. Primeiro, porque eu não tinha escrito o que eles alegavam ter entendido. Eu também achava que eles teriam de provar que tinham sido prejudicados, o que configuraria difamação. Mas, se eles não são uma empresa, não lidam com o público, e meu artigo era destinado ao público, como eles podem ter perdido dinheiro, ter sido prejudicados? Diziam que aquilo que eu havia escrito era perfeitamente justo, defensável. Eu tive grande apoio de cientistas, jornalistas, céticos, defensores do direito de livre expressão. Eles me diziam que eu não estava louco. O problema é que, na Inglaterra, a lei antidifamação é interpretada de uma maneira totalmente diferente. Normalmente, quem traz o caso para a Justiça é quem tem de provar que a afirmação é mentirosa e que lhe causou algum dano. Na Inglaterra, não. Quem é acusado de difamar tem de provar que está certo. Você é considerado culpado até conseguir provar que é inocente.
ÉPOCA – Que problemas uma lei como a inglesa traz para a sociedade? Singh – Ela pode prejudicar o debate científico. Para a ciência, é importante discutir, debater, argumentar, porque é assim que a ciência avança. Você diz o que acha que é verdade com base em suas observações e nos experimentos que você realizou. É preciso fazê-los com cuidado, porque outros tentarão provar que você está errado. A crítica na ciência é a única maneira que temos de checar se uma droga é eficaz, se uma tecnologia funciona. A lei antidifamação não pode de maneira alguma interromper o debate científico. Um colega meu, Ben Goldacre (colunista do jornal The Guardian), criticou uma pessoa que anunciava vitaminas para tratar aids na África. A pessoa o processou, mas depois desistiu da ação. Só que Goldacre e The Guardian perderam milhares de libras se defendendo. Por causa de fatos como esse, parece que não se deve criticar uma pessoa, mesmo que ela esteja errada. Na corte, durante minha apelação em abril, os juízes disseram que não querem que a Inglaterra seja um lugar como a Itália foi há centenas de anos. No século XVII, o astrônomo Galileu Galilei foi condenado ao isolamento por afirmar que a Terra não era o centro do Universo, como defendia a Igreja. A lei era equivocada na Itália há 400 anos. Na Inglaterra, continua errada até hoje.
ÉPOCA – Ter sido processado afetou a maneira como o senhor escreve? Singh – Nos últimos dois anos, fiquei concentrado no caso e, praticamente, não escrevi. Agora, pretendo voltar e espero que a lei mude. Sei que existe um problema muito grande. Quem escreve se autocensura por medo de ser processado. A cada um que é processado, outros cinco jornalistas ficam tão assustados que simplesmente desistem. Isso não afeta só a minha liberdade de expressão como escritor, mas a liberdade de todo mundo como leitor. Você não sabe se tudo aquilo que deveria ser escrito é de fato. É só falar com editores de revistas científicas, de artigos médicos, e todos vão admitir que existem artigos que deveriam ser publicados e não foram. É impossível medir a extensão do dano.
"A justiça inglesa aceita julgar até casos que ocorreram em outros
países. Quem escreve se autocensura por medo de ser processado"
ÉPOCA – Por que o senhor afirma que a lei antidifamação da Inglaterra tolhe a liberdade de expressão em outros países? Singh – A Justiça inglesa aceita julgar casos de difamação – mesmo que eles tenham acontecido em outros países – se o material com o aspecto polêmico puder ser lido, visto ou ouvido na Inglaterra e se a pessoa ou a empresa afetada tiverem uma reputação ou negócios em nosso país. Por causa dessas brechas, pessoas ao redor do mundo estão trazendo seus casos de difamação para a Justiça de Londres. Elas usam nossa lei injusta e ofensiva para se proteger de críticas em seu próprio país. Tenho muito orgulho de ser inglês, mas me envergonho dessa lei. As pessoas vêm para Londres não porque nossa lei antidifamação é boa, mas porque ela é ruim.
ÉPOCA – Há casos em que isso já ocorreu? Singh – Uma empresa americana fabricante de próteses cardíacas está processando na Justiça da Inglaterra um cardiologista britânico que criticou seus produtos durante uma conferência nos Estados Unidos. Outro caso envolve um cientista dinamarquês que deu uma palestra em Oxford, na Inglaterra, e foi processado por uma empresa americana por ter falado mal de seu produto. Uma vez, dei uma entrevista sobre meu caso para um veículo da imprensa australiana, mas o jornalista não pôde publicar o que eu disse. O advogado dele disse: “Não quero ser processado a milhas de distância, em Londres”. Restou ao repórter escrever um artigo sobre como era difícil ser jornalista na Austrália por causa da lei antidifamação inglesa.
ÉPOCA – Não há nada que os outros países possam fazer para que a Justiça da Inglaterra não interfira além de suas fronteiras? Singh – Os EUA são a terra da liberdade de expressão. Eles têm muito orgulho de valorizar esse direito das pessoas. Por isso, têm reagido muito mal ao que acontece na Inglaterra. No mês passado, o presidente Barack Obama aprovou uma lei que diz que, se um cidadão americano for processado em Londres, a corte inglesa não pode requisitar como parte da indenização os bens e as propriedades do réu nos EUA. Na prática, os EUA estão dizendo: não respeitamos a lei da Inglaterra.
ÉPOCA – O que deveria ser mudado na lei para garantir a liberdade de expressão? Singh – A lei deveria ser mais flexível quando o assunto em debate é de interesse público. As empresas são tão poderosas que, se não houvesse o conceito de interesse público, os jornalistas não poderiam criticar sem ser processados. Os custos também precisam diminuir. Defender-se na Justiça de uma acusação de difamação é tão caro e consome tanto tempo que os jornalistas e os cientistas não conseguem pagar sua defesa. Por isso, as pessoas sentem medo. Não veem como ganhar e sabem que não podem pagar se elas perderem.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário