segunda-feira, outubro 18, 2010

A banalização da cultura e o papel do escritor

A banalização da cultura e o papel do escritor
CARLOS ANDRÉ MOREIRA - Diário Catarinense
Vargas Llosa prega a atuação política dos intelectuais e comenta a nova e a velha esquerda na América Latina
A ligação é atendida, e a voz – não apenas do outro lado da linha, mas em outro hemisfério – é educada e cortês ,como a ideia que se faz do homem a quem pertence. O escritor peruano Mario Vargas Llosa diz que estava à espera do telefonema, como havia sido combinado. Preza a pontualidade.
Aos 74 anos, Llosa não esperava receber o Nobel. Seu nome vinha, gradativamente, migrando da categoria dos autores sempre cotados para a lista dos injustiçados pela Academia Sueca. A entrevista vinha sendo combinada havia mais de mês e, finalmente, estava marcada para a manhã de 6 de outubro, menos de 24 horas antes de o peruano ser anunciado como o mais novo Nobel de língua espanhola (e o primeiro latino-americano desde Octávio Paz, em 1990). Ele reside atualmente em Nova York, atuando como professor convidado da conceituada Universidade Princeton. Está ministrando uma cátedra de romance e outra sobre Jorge Luis Borges (que definiu na entrevista como seu “antípoda”).
Ao longo de 32 minutos de conversa telefônica, Vargas Llosa falou sobre banalização e superficialização da cultura, de sua obra, seus projetos literários, seu livro de ensaios sobre a América Latina que está saindo agora no Brasil e o romance que será publicado em breve em espanhol. – Não me faltam projetos para escrever, o que me falta é tempo para realizá-los – afirmou, pouco antes de dizer, também com a educação de um lorde, que seu tempo para a entrevista estava acabando. Precisaria sair.
A gradual perda de importância da literatura no cenário contemporâneo seria um sintoma dessa superficialização?
Vargas Llosa – Creio que há duas vertentes nesse fenômeno. Uma é um esforço da cultura para chegar a um maior número de pessoas. No passado, a cultura era um fenômeno restrito a uma minoria social, da qual estava praticamente apartada a maior parte da sociedade. Felizmente, em nossa época a cultura foi conquistando cada vez mais adeptos e chegando a setores mais amplos da sociedade, o que é, desde já, positivo. Mas, ao mesmo tempo, se a ideia de cultura persegue só um objetivo quantitativo, de chegar de qualquer forma ao maior número de pessoas, ainda que para isso tenha que mirar cada vez mais baixo, ela perde sua razão de ser e se converte em puro espetáculo, puro entretenimento. Apagam-se um pouco as fronteiras entre o que é preocupação e diversão, seriedade e comicidade. Isso vem ocorrendo não apenas nos campos específicos das artes, na pintura, por exemplo, onde temos visto a ocorrência de falsos valores que são imensamente populares por seu caráter espetacular, chamativo, ainda que careçam de originalidade, de frescor, de profundidade. Ainda que isso seja mais visível na pintura, também se manifesta numa literatura mais “cintilante”, digamos, mas menos profunda, menos permanente, muito mais subordinada ao momento. E isso ocorre em outros campos também, que aparentemente não têm nada a ver com a criação literária ou artística, como a política. A política também se frivolizou, se banalizou. Curiosamente, a extensão da democracia, que foi algo tão positivo, atraiu, também, uma certa banalização da política, e é isto que está por trás de uma apatia muito grande em participar ativamente na vida política, nas eleições, nas diferentes instituições. Esse é um fenômeno que abarca por igual tanto o mundo desenvolvido quanto o em desenvolvimento. Ocorre com a religião e a moral, por exemplo. Estas atividades também sofreram o contágio da banalização, da trivialização. É um fenômeno que sofrem, com seus matizes e diferenças, praticamente todos os países.

Mas isso que o senhor determina como apatia política não é a normalidade democrática, a aceitação de que pela via democrática as transformações se dão de forma mais lenta do que o ímpeto do engajamento imagina?
Vargas Llosa – Sobretudo em países como os nossos, em que a democracia é jovem, em que tivemos regimes autoritários que eclipsavam a vida política, a participação, a possibilidade de criticar, de eleger – seria nesses países que, ao contrário, a democracia deveria ser celebrada e atrair participação massiva. Precisamente porque a democracia permite a todos os cidadãos intervir de maneira ativa e criativa na tomada das decisões em todos os âmbitos da vida, o social, o econômico e o cultural. E, curiosamente, esse fenômeno não ocorreu, a não ser de maneira muito transitória, seguido, logo depois, por uma espécie de decepção, de desencanto, de frustração com essa liberdade, esse pluralismo político, esses governos civis nascidos de eleições que se ambicionam tanto quando vivemos sob ditaduras. Creio que isso é um produto dessa banalização da vida em geral, da cultura no sentido mais amplo da palavra, que tem tal efeito na vida política. O que é muito perigoso enquanto nossas democracias forem tão frágeis e tão pouco arraigadas. Também o que está ocorrendo no campo da educação é definitivo para o progresso de todas as sociedades a longo e médio prazo. E se a educação se vê afetada por esse processo de superficialidade da cultura, é o futuro de toda a sociedade que está comprometido.
O senhor ainda mantém a ideia defendida ao longo de sua carreira do escritor como um ser político, tanto em sua obra quanto fora dela?
Vargas Llosa – Acredito que o escritor é um cidadão e tem a obrigação moral de participar da vida cívica. Não que ele precise se comprometer como político profissional, não é a isso que me refiro, mas, sim, tem de participar de alguma maneira do debate público, do debate cívico, utilizar as tribunas que um intelectual tem a seu dispor tanto para defender aquilo que acha que tem de defender quanto para criticar o que lhe parece que anda mal. O que eu censuraria seria a abstenção, a indiferença de um intelectual pela vida cívica. Creio que isso não se justifica. Porque se alguém volta as costas à problemática social e política não tem o direito de protestar quando aparecem demagogos, governantes ladrões ou arbitrários. Simplesmente pelo fato de ter tribunas e poder falar a um público mais amplo é que escritores e intelectuais deveriam pelo menos participar do debate público, tratando, por exemplo, de limpar a linguagem dos lugares-comuns, dos clichês que perturbam tanto a linguagem política. Nesse campo, o escritor pode prestar um serviço à vida cívica, fazendo com que prevaleçam as ideias sobre a retórica insossa e demagógica.
Esse é um compromisso cada vez menos praticado pelos escritores.
Vargas Llosa – Efetivamente, mas creio que isso é produto dessa banalização da cultura, que afeta também os intelectuais e escritores e os faz ver com um certo cinismo, com certa distância ou desprezo tudo que é atividade política ou cívica. E aí há um grande perigo, porque essa é uma das circunstâncias em que a política pode cair em mãos de seitas de demagogos ou fanáticos.
A última década viu o surgimento de governos latino-americanos que representam modelos diferentes da esquerda. Como o senhor analisa essa mudança no cenário político do continente?
Vargas Llosa – Há na América Latina uma esquerda que está jogando com as regras democráticas, como seria o caso do Chile na época da Concertación, na época de Lagos e Bachelet. O Brasil é um caso muito interessante, com Lula, pois subiu ao poder alguém que estava muito à esquerda e que logo se voltou para uma linha centrista sem renunciar às ideias de compromisso social, fez uma política de mercado, de apoio à empresa privada. É o que está ocorrendo também no Uruguai, porque lá subiu ao poder uma esquerda muito radical que está respeitando a democracia, o mercado, a propriedade privada. Na América Latina, esse tipo de esquerda deve ser saudada, porque fortalece a democracia, como também a fortalecem os governos de direita que respeitem as regras democráticas, como em Chile, Colômbia, Peru. Agora, há uma outra esquerda que é a antidemocrática, revolucionária, em Cuba, Venezuela, Nicarágua. É uma esquerda, digamos, mais pré-histórica, que quer acabar com a democracia, estabelecer ditaduras sociais, uma esquerda que cada vez tem menos partidários porque é muito difícil que ainda possa despertar ilusões de justiça e de prosperidade um modelo como o cubano, onde o povo está morrendo de fome e a ditadura está se desfazendo sozinha, simplesmente pela incapacidade de resolver os problemas mais elementares. Creio que essa América Latina está de saída, vai perder cada vez mais fogo, impulso, apoios, e a longo prazo prevalecerá uma democracia com uma esquerda e uma direita que tenham aprendido as lições da história: que os problemas não se resolvem com homens fortes, com ditaduras, sejam militares, sejam revolucionárias, mas, sim, através dos grandes consensos que a democracia permite, com sociedades abertas, com governos que podem ser eleitos, criticados e renovados. Esse é o caminho do progresso, e, afortunadamente, uma boa parte da América Latina o está seguindo.
Essa circunstância política associada aos efeitos da crise imobiliária de dois anos atrás nos países desenvolvidos mostra que a América Latina pode estar se convertendo em um laboratório para a democracia?
Vargas Llosa – Sim, veja como é interessante: a América Latina resistiu à crise muito melhor, pois estava melhor defendida que os países mais antigos, mais prósperos, mais sólidos. Na América Latina, esses efeitos foram menos sentidos. Parece mentira, mas houve em geral no continente uma série de políticas anteriores responsáveis, sobretudo no campo financeiro.
O senhor já abordou em seus livros a formação da América Latina, a questão indígena, o poder caudilhesco no continente, o erotismo. Quais temas ainda lhe interessam para a sua ficção?
Vargas Llosa – Está saindo agora, no começo de novembro, um romance no qual venho trabalhando nos últimos três anos, que se chama El Sueño del Celta, porque o protagonista é um um irlandês, um personagem histórico que se chamava Roger Casement. Ele foi amigo de Joseph Conrad, viveu muito tempo no Congo como diplomata britânico e estudou com muitos detalhes todas as atrocidades cometidas na África na época da colonização belga, particularmente pelas empresas de extração de borracha. E as denúncias que ele fez tiveram um enorme efeito na Europa, tanto que o governo britânico o enviou para a Amazônia. Esteve nas amazônias brasileira, peruana, colombiana, estudando as condições de vida dos indígenas nas companhias borracheiras. São muito interessantes os informes que esse senhor escreveu sobre o que ocorria no mundo amazônico com os índios e, particularmente, o funcionamento da indústria da borracha. À parte deste trabalho de defesa dos direitos humanos, de crítica contra a colonização, ele trabalhou também, secretamente a princípio, e depois publicamente, pela independência da Irlanda. Meu livro é um romance, mas utiliza materiais históricos e segue pelo menos os fatos históricos básicos de seu tempo. Foi uma experiência muito interessante, porque me fez investigar, viajar, adentrar em mundos que eu não conhecia, como a África e a Irlanda. Então, para mim foi também uma aventura pessoal escrever esse livro. Deve sair no Brasil em 2011.
O personagem de alguma forma reflete sua própria condição de autor latino-americano radicado na Europa e nos Estados Unidos. O senhor, hoje, teria esse olhar do “estrangeiro viajante” ao mirar a América Latina?
Vargas Llosa – Bem, eu nunca me senti estrangeiro em parte alguma. A verdade é que, sem haver me proposto a isso, mas pela vida que levei e pela minha forma de pensar, me senti um cidadão do mundo, me senti em casa em todo lugar em que estive. Em algumas partes com mais alegria e contentamento do que em outras, mas, na verdade, eu nunca senti essa sensação do estrangeiro, de alguém apartado completamente da sociedade em que está. Sempre fiz o possível para me interessar por tudo o que ocorria ao meu redor e para me solidarizar de imediato com os problemas e as oportunidades que o meio no qual estava oferecia. E acho que isso se reflete em meus livros, também.

Seu livro que está sendo lançado agora no Brasil, Sabres e Utopias, reúne textos e artigos de praticamente toda sua carreira de escritor. É um testamento intelectual?
Vargas Llosa – É uma coletânea de ensaios e artigos de diferentes temáticas, políticas, econômicas, culturais, literárias. Eu não fiz a seleção, quem os reuniu foi Carlos Granés, escritor colombiano que é crítico e conhece muito minha obra. É interessante a maneira como ele organizou o livro. Creio que da forma como ele o montou é possível ver toda uma trajetória, tanto literária quanto política. Sim, a coletânea é, de certa forma, uma autobiografia intelectual, mas feita por uma pessoa independente. Facultei a ele todo o material, mas não interferi em nada, deixei que ele atuasse com toda liberdade. E resultou num testemunho autobiográfico de uma maneira de reagir, de pensar diante de diferentes temas.

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