sábado, outubro 30, 2010

Da empatia

Da empatia
Arthur Dapieve – O Globo – Segundo Caderno
Há imagens que saem da sombra
Primo Levi, o escritor judeu italiano, certa vez disse algo verdadeiro e aterrador sobre Anne Frank, a menina judia holandesa que deixou registrados medos e esperanças em seu célebre diário.
“Uma única Anne Frank nos comove mais do que as inumeráveis pessoas que sofreram como ela, mas cujas imagens permaneceram na sombra”, meditou. “E talvez tenha de ser assim: se pudéssemos e devêssemos compartilhar o sofrimento de todos, não conseguiríamos seguir vivendo.” Anne Frank morreu de tifo, no campo de concentração de Bergen-Belsen, em 1945, aos 15 anos. Levi esteve em Auschwitz, sobreviveu e se suicidou na casa de sua família, em Turim, em 1987, aos 67 anos.
Lembro-me muito dos dois sempre que ou uma notícia de jornal ou uma conversa casual traz à tona mais alguma história triste dessa vida. É preciso polir a carapaça, racionar a empatia, não pensar muito a fundo nos fatos — e nem me refiro aos fatos políticos — para conseguir levantar da mesa do café bem-disposto e começar o dia. Não nos é suportável compartilhar o sofrimento de todos, no Morro do Bumba, na Faixa de Gaza. É preciso, também, buscar nas mesmas páginas ou nos mesmos papos algum caso feliz, algum contrapeso em alegria — o resgate dos mineiros no Chile, a vitória no Engenhão — que proporcione a energia para nos erguermos e seguirmos em frente.
Às vezes, porém, uma notícia fura o tal bloqueio que armamos para a nossa própria preservação e nos comove, de verdade. Comigo foi o caso, na sexta-feira passada, do registro pela internet da morte do designer paulista Henrique Carvalho Pereira, de 22 anos. Fiquei com os dedos suspensos sobre o teclado do computador, um nó na garganta, relembrando a tragédia. No dia 21 de dezembro de 2009, Henrique estava folheando um livro de culinária na Livraria Cultura da Avenida Paulista quando foi agredido com um taco de beisebol pelo personal trainer Alessandre Fernando Aleixo, de 38 anos. O designer esteve em coma desde então. Dez meses e um dia.
Alessandre continua preso, à espera de julgamento, agora não mais por tentativa de homicídio, mas por homicídio. Seu crime não teve motivação alguma, Henrique foi escolhido sabe-se lá por que razão. O personal trainer tem problemas psiquiátricos e poderá ser considerado inimputável — ou seja, sem responsabilidade por seus atos — dependendo do resultado de um exame de sanidade mental realizado no começo do mês, mas ainda sem data prevista para a divulgação do laudo.
Uma obra que o designer concebera para a Cow Parade, a “Vaca de Sampa”, tem sido exibida nos campi da Uniban, pela qual ele se formou.
Henrique nunca chegou a vê-la pelas ruas da cidade.
Nos últimos dez meses, sua família estabelecera uma rotina diária de visitas à UTI do Hospital das Clínicas. Sua mãe, uma professora, licenciou-se para poder se dedicar exclusivamente a Henrique. A princípio, havia esperança.
Embora estivesse em coma desde a agressão, o rapaz às vezes dava a impressão de reagir a estímulos musicais ou táteis. Nos últimos dias, contudo, ele não se movia mais.
A família pressentiu que era chegada a hora.
Henrique morreu de falência múltipla dos órgãos, às 5h30m de sexta-feira. Religiosos, seus pais receberam a notícia com serenidade e sem ódio. Agora, é tratar de retomar a vida e dar mais atenção ao irmão caçula do designer.
Milhares de famílias enfrentam dramas mais ou menos similares, e no entanto únicos, todos os dias. Não é possível nem desejável compartilhar o sofrimento de todas elas. Carregar o peso do mundo nas costas levaria, creio, à mesma saída de Primo Levi. Por que, então, perguntei-me, os dedos voltando ao teclado, por que, então, o desenlace previsível de uma desgraça já distante no tempo e no espaço, envolvendo pessoas que não conheço, deixa-me tão comovido? Primeiro, obviamente, eu sou humano. Apesar de a empatia não nos ser exclusiva (a internet está cheia de imagens de cães tentando salvar cães de atropelamento), ela é uma das mais belas características de nosso gênero.
Há mais na história, certamente. Tocou-me a faixa etária de Henrique, a mesma de alunos e enteadas, tão cheios de planos e sonhos. Tocou-me a circunstância de o ataque ter sido realizado numa livraria, enquanto a vítima folheava algo, situação tão corriqueira na minha vida e em tese tão distante da possibilidade de morte. Tocou-me o absurdo aleatório da agressão, que reitera, ao menos para não religiosos como eu, a falta de sentido da existência, a necessidade de se viver do modo mais digno e intenso possível — porque nunca se sabe o que nos reserva a próxima página.
Portanto, tendo iniciado o texto com a citação de um escritor italiano, vou fechá-lo citando outro escritor italiano. Dino Buzzatti.
Do romance “O deserto dos tártaros”, traduzido por Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade para a Record: “Justamente naquela época Drogo deu-se conta de que os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte dela; que se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, e é isso que causa a solidão da vida.” Como se lê, os grandes autores divergem sobre os limites da empatia.

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