sábado, novembro 13, 2010

A chama e o chamado

A chama e o chamado
José Miguel Wisnik – O Globo – Segundo Caderno
“A poesia é um chamado, a música é uma chama.” Estas palavras do poeta e letrista Paulo Neves são o que me ocorre de melhor para continuar a conversa com Francisco Bosco sobre a poesia, a letra de música e a canção. A propósito, este é um gênero delicioso de se praticar num jornal, a conversação sobre temas infindáveis, contra a polêmica cricrítica (sem evitar, é claro, a polêmica, em casos em que a necessidade impõe).
A crítica jornalística não costuma reconhecer a conversação da amizade como um gênero superior de esclarecimento.
Quando falava do “gênero absurdo” que decorre da posição daquele que escreve palavras para uma música que ainda não existe, por ser obrigado em certa medida a simulá-la na sua ausência, Bosco estava tratando como “gênero” um dos meandros mais particulares da composição de canções: a escrita prévia de um texto poético que não deve se confundir com o poema de livro, por se destinar aos torneios da entoação e da melodia. Nesse caso, o letrista padeceria, segundo Bosco, da necessidade de antecipar nas palavras exigências rítmicas, sintáticas, prosódicas de uma música que ainda falta. Trata-se de um trabalho pouco visível (porque nesse caso é o músico performático que rouba a cena e o gozo da conclusão), ao qual Francisco Bosco está procurando dar um estatuto teórico, acompanhado, ao mesmo tempo, de um intenso desabafo confessional. Como a distribuição das ênfases é justamente o que há de mais sintomático e de mais “musical” num texto, me cha mou a atenção que ele estivesse falando antes de mais nada da sua experiência pessoal de letrista, mas que não dissesse isso com todas as letras.
Em que sentido podemos dizer que uma letra ainda não existe, quando a melodia da canção se faz primeiro e ela ainda não foi escrita? Em que sentido podemos dizer que uma música ainda não existe, quando uma letra está sendo escrita para uma canção a ser composta? Gosto de um esquema que li no livro “O virtual”, de Pierre Lévy, e que é para mim de altíssima ajuda. Trata-se de distinguir as dimensões do real, do possível, do virtual e do atual. Vou chamar o “real”, aqui, de “realidade”, para que não se confunda com o “real” lacaniano. A realidade subsiste: ela está dada e se replica em tudo que conhecemos. O possível insiste: força a realidade a ir ao seu limite, a esgotar as suas possibilidades, sem que ela se altere substancialmente.
O virtual, surpreendentemente, existe: um objeto quer entrar na realidade e redimensioná-la graças à sua presença. O atual acontece, quando o virtual salta para dentro da realidade e ela não é mais a mesma.
O processo poético, como todo processo criativo, convoca o objeto virtual a entrar na realidade — ele chama a chama, beijo na língua da língua.
Esse objeto já existe, mesmo quando ainda não se atualizou inteiramente. Quando Guinga cantarola a canção que compôs para ser letrada, a gente escuta na voz dele gestos verbais inaudíveis, restos de palavras insinuadas, fonemas que querem dizer algo que não sabem. Aquilo não é música instrumental, já é canção. É como um sonho do qual, ao acordar, não lembramos senão as sensações. Dar voz a esse sonho é colocar letra na melodia. As palavras são inventadas, sílaba a sílaba, para ocupar o lugar dessa falta, desse objeto ausente que no entanto existe, embora inacessível.
Há um mistério gozozo nesse lugar que está entre o virtual que se apresenta e o atual que ainda não se deu: quando a canção já existe virtualmente sem estar terminada (porque atualizá-la e terminála custa um preço em determinação, embora evidentemente um ganho, no jato de luz da entrada do objeto novo na realidade). Não é por acaso que Dorival Caymmi, mestre da joi d’amor, gostava de prolongar ao máximo esse estado de flutuação virtual da canção, deixando-a longo tempo em banho-maria, “quase” concluída, até que ela se decantasse como absolutamente necessária. Confesso que gosto desse estado inconcluso, mesmo sabendo que, como dizem os vers o s d e M a u r o Aguiar para uma canção que musiquei, “as canções só são canções quando não são promessas” (desembocando fin a l m e n t e n o atual) ao mesmo tempo em que “só são canções quando não são mais nossas” (ganhando uma realidade própria).
Mas então, quando se escreve uma letra para ser musicada, e as palavras chamam, não há ali, já, a chama da canção? É verdade que suas durações contínuas, seus desenhos, seu modo de ocupar o tempo e o silêncio fazem da música a própria presentificação da ausência — a chama. Todo e qualquer poema pode ser musicado, mas alguns pedem isso, outros não. Chico Buarque musicou João Cabral da dicção oralizante, das cadências ritmadas e toantes de “Morte e vida severina”, o lado mais “musical” do poeta deliberadamente antimusical. Tentar musicar “A educação pela pedra” como canção popular seria uma luta árdua e talvez vã com as palavras.
A letra de canção tem que estar pedindo a música que, de certa maneira, já existe nela.
É aí que eu me lembro, nada gratuitamente, da “Doce sereia” de Francisco Bosco e João Bosco. Convido todos a ouvi-la: ela fala da eterna aparição da mulher sempre presente e ausente, nesse entrelugar virtual e atual, em que chega e foge, e à qual a canção dá, como poucas, o sopro da palavra-música. Dividir a parceria com o pai músico pode ser um problema, dado que a questão oscila, como dizia Agamben, no meu comentário de sábado passado, entre o Édipo e a Esfinge.
Mas não é também uma espécie de solução? Aqui termina a minha alta ajuda.

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