domingo, novembro 07, 2010

O dever da ingratidão

O dever da ingratidão
EDITORIAL - FOLHA DE SÃO PAULO - editoriais@uol.com.br
É recomendável que Lula não interfira no próximo governo, guardando seu prestígio político e poder simbólico para opinar em temas de Estado.
Atribui-se ao general Charles de Gaulle - líder da resistência antinazista e presidente da França entre 1959 e 1969- a ideia de que a "ingratidão é um dever do governante". Chocante, aparentemente cínica, a frase nada tem de imoral.
Pois o governante precisa descartar toda consideração de ordem pessoal, por mais meritória, se pretende defender acima de tudo o interesse do Estado e da coletividade. Esse é um dos aspectos em que os ideais de conduta na vida pública e na vida particular não coincidem.
A presidente eleita, Dilma Rousseff, desfruta neste momento das núpcias da vitória, quando tudo são rosas. Mas a frase de De Gaulle já a interpela no horizonte. A mesma popularidade imantada na figura de seu padrinho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que antes da eleição fora sua dádiva, agora tende a ser seu fardo.
Uma vez investida nos imensos poderes do hiperpresidencialismo brasileiro, Dilma governará. Mesmo que lhe faltem as qualidades gerenciais que parece ter, seu governo vai adquirir dinâmica e fisionomia próprias. Conforme a praxe, uma campanha silenciosa nos bastidores da administração em prol de sua reeleição começará no dia seguinte ao da posse.
Não parece haver motivo, portanto, para recear alguma duplicidade no comando do Executivo federal. Mas Lula reterá mais do que a guarda pessoal concedida pelas filhas de Lear ao pai que abdicava do trono, na tragédia de Shakespeare. Mesmo sem cargo, continuará a exercer poder político e simbólico.
O futuro desse poder paralelo dependerá da conjuntura econômica e do desempenho da pupila. Caso Dilma sustente altos índices de aprovação popular, a nova presidente eclipsará o antecessor. Caso contrário, parece difícil antever se Lula seria favorecido pela nostalgia ou atingido na condição de inventor do eventual fracasso.
Não é preciso ser profeta, porém, para prever que não faltarão motivos, às vezes prosaicos, de atrito entre "rei posto" e "rei morto", nos termos da metáfora, desta vez oportuna, evocada pelo presidente. A julgar por situações análogas no passado, é provável que o tempo se encarregue de afastar um do outro.
Lula está acostumado há décadas a uma insistente exposição pública, quase sempre sob luz favorável; acostumou-se também às benesses e condescendências que cercam todo presidente, ainda mais quando popular. Como se vê, não é apenas para a presidente eleita que a nova situação se afigura desconfortável.
O recomendável é que o presidente Lula não interfira no futuro governo. Tendo-se definido certa vez como "metamorfose ambulante", que ele possa reinventar-se novamente - acima do cotidiano político, opinando nos momentos decisivos e nas questões de Estado, dedicado a emprestar seu grande prestígio internacional à articulação dos interesses brasileiros no exterior e ao progresso de causas humanitárias.

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