José Saramago: ideias claras, escrita clara
Faleceu nesta sexta-feira, 18 de junho de 2010, o escritor português vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1998. Confira entrevista concedida à NOVA ESCOLA em 2003, na qual Saramago argumenta que a língua é uma ferramenta de comunicação e cabe à escola ensinar a usá-la
"...ler em voz alta. Não há maneira melhor de ganhar consciência do que se lê e do que se poderá vir a escrever."
José Saramago nasceu em 1922 em Azinhaga, aldeia próxima a Lisboa, Portugal, para onde se mudou com seus pais ainda pequeno. Por dificuldades econômicas, interrompeu os estudos ao concluir o liceu (equivalente ao Ensino Fundamental). Voltou a estudar mais tarde, em curso técnico. Foi serralheiro, mecânico, desenhista, funcionário público, editor e tradutor antes de consagrar-se como um dos mais destacados escritores contemporâneos. Em 1998 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Em 2009, publicou seu último romance, Caim. Saramago faleceu no dia 18 de junho de 2010, aos 87 anos, em sua residência, nas Ilhas Canárias.
O Prêmio Nobel de Literatura José Saramago começou a ter contato com livros ao freqüentar o curso técnico de mecânica, estimulado pela disciplina de Literatura. Escreveu seu primeiro romance aos 25 anos, Terra do Pecado, e parou. Ficou duas décadas sem nada publicar. Em 1966 lançou coletâneas de poemas e ensaios escritos nas horas vagas. Sua carreira literária decolou mesmo quando ele estava com 57 anos, com Levantado do Chão. Dono de narrativa de estilo inconfundível, faz de seus romances verdadeiras reflexões sobre o ser humano, suas preocupações mais íntimas e aspectos da vida que o inquietam. Saramago esteve no Brasil em maio de 2003, lançando o romance, O Homem Duplicado, quando nos concedeu esta entrevista por e-mail, contando um pouco de seu processo de criação e de sua visão do papel do professor e da escola na formação do aluno leitor e escritor. "Cabe à escola ensinar o aluno a escrever corretamente", afirma o autor, para quem a língua é a mais eficiente ferramenta de comunicação e, como tal, "precisa estar sempre limpa e em condições de uso". As ideias de Saramago põem em questão o papel da escola no desenvolvimento da criatividade. Ele provoca os educadores ao afirmar que para navegar sem regras é preciso ser um bom condutor, e este não se faz sem aprendê-las. Saramago não espera - e portanto não cobra - da escola a subversão da língua, e sim seu domínio.
O estilo de sua escrita muitas vezes subverte a estrutura da língua portuguesa, atitude raramente valorizada pelos professores quando manifestada pelos alunos. O senhor acredita que há pouca flexibilidade na forma de lecionar o português? José Saramago A escola deveria ensinar a ouvir. Cabe a ela ensinar o aluno a escrever corretamente e também explicar por que as regras são assim, e não de outra maneira. Mas a escola não será o lugar onde se subverte e revoluciona a estrutura da língua. Essa tarefa pertence aos escritores, se estes consideram que têm motivos para o fazer.
A maneira como a língua é ensinada não influi no surgimento de novos estilos? Saramago Os estilos saem do ovo da sua própria necessidade. Ensine-se a pensar claro e a escritura será clara. E, já agora, gostaria que houvesse uma luta implacável contra o erro de ortografia. A língua é uma ferramenta de comunicação de todas a mais perfeita , e as ferramentas (pergunte-se a um operário) têm de estar limpas e em condições de trabalhar eficazmente.
É difícil criar uma nova maneira de redigir quando existe toda uma norma culta que impõe regras a quem usa a língua? Saramago Como eu disse, a escola não é o lugar em que se subverte a estrutura da língua porque ela não tem preparação própria suficiente para se arriscar nessa aventura. As regras são como os sinais de trânsito numa estrada. Estão ali para orientar e dar segurança ao condutor. Claro que é possível viajar por uma rodovia onde não haja sinais de trânsito, mas para isso é indispensável ser um bom condutor. Aí está a diferença.
Nas suas memórias de estudante, o que mais influenciou a sua carreira? Saramago Nada me influenciou verdadeiramente, nem ninguém. Salvo a seleta escolar (a coletânea de textos literários que havia à disposição dos alunos), que para mim fez as vezes da biblioteca que não existia na minha casa. Depois descobri o caminho das bibliotecas públicas, e foi aí, sem que eu pudesse sequer imaginá-lo, que o escritor começou a nascer.
No início de sua carreira, a crítica literária muitas vezes foi negativa ao analisar suas obras, mas isso não o impediu de continuar... Saramago Uma ou outra crítica reticente ou negativa que algum dia me tenha sido feita não mereceria que lhe pusessem ao pescoço um cartaz tão terrível. Salvo, evidentemente, se se trata de opiniões que não chegaram ao meu conhecimento. De qualquer modo, nem a crítica mais destrutiva me faria desviar do meu caminho.
O prazer que crianças e adolescentes sentem ao escrever corre o risco de ser minado por críticas negativas recebidas durante as aulas. Como seria a maneira mais adequada de analisar as redações dos alunos? Saramago Penso que a análise deveria ser não de julgamento, mas orientadora. O mais fácil de tudo é dizer "isto está bem" ou "isto está mal". Os problemas começam quando se quer explicar o porquê e se chega à conclusão de que afinal o que determinou o juízo, positivo ou negativo, foi simplesmente o gosto pessoal e intransmissível do mestre.
De que maneira um professor de Língua Portuguesa incentiva e ajuda seus alunos a compor boas redações? Saramago Pondo-os para ler em voz alta. Não há maneira melhor de ganhar consciência do que se lê, e, portanto, do que se poderá vir a escrever. O que os signos impressos mostram é o desenho da palavra "embalsamada". Só a leitura em voz alta a "ressuscita" completamente. Os docentes dirão que não há tempo para isso, mas depois não terão outro remédio que corrigir erros que poderiam ter sido evitados. Se é que verdadeiramente os corrigem. Porque corrigir não é traçar um risco vermelho debaixo da palavra. Corrigir é reconstruir a palavra na mente do aluno.
Como se dá o processo de criação de seus livros? Saramago É quase impossível lhe dar essa resposta. Pode-se recordar como nasceu a idéia de um romance, pode-se reconstituir mais ou menos o que no seu percurso foi consciente, mas, tal como sucede com os icebergs, o mais importante não se vê. O que sustenta o visível está por baixo. Sabe-se aonde se quer chegar, mas, exceto alguns pontos de passagem, não conhecemos o itinerário. Como escreveu Antonio Machado, o grande poeta espanhol, é o andar que faz o caminho.
O senhor não planeja a obra que está iniciando? Saramago No meu caso particular, o romance cresce como cresce uma árvore. Suponha que a árvore conhece a altura que terá, o aspecto geral da espécie a que pertence, mas sabe (imagino que sabe) que não será igual à sua vizinha. Os ramos podem nascer-lhe mais acima ou mais abaixo, apontar para um lado ou para outro. Se tem um plano de crescimento, é possível dizer que nesse plano há tanto de liberdade como de necessidade. Para mim, seria impensável estabelecer um plano rígido para o livro, com cada coisa no seu lugar e um lugar para cada coisa. As associações de idéias, processo mental que não controlamos, podem levar-nos por caminhos que não havíamos previsto. Também na escrita a liberdade vai de braço dado com a necessidade.
Depois de finalizar um romance, o senhor costuma modificar o que inicialmente escreveu, aumentar ou diminuir capítulos, inserir novos trechos? Saramago Volto à comparação com a árvore. Podemos conceber uma árvore capaz de corrigir-se a si mesma? Não ignoro que há autores que trabalham longamente sobre o texto, que desenvolvem, encurtam, intercalam. Não é o meu caso. Avanço devagar, com a preocupação de não deixar pontas soltas, e isso permite-me manter sempre "esticado" o fio narrativo. De todo o modo, não devemos esquecer que o texto é inseparável do momento em que é escrito. Há muito de aleatório no que se escreve.
O que significa escrever para o senhor? Saramago É ir descobrindo que tínhamos na cabeça mais coisas do que havíamos suposto antes.
Como o senhor escolhe os temas de seus romances? Saramago Não "escolho" os assuntos dos meus romances. São eles que se apresentam de súbito, e às vezes nas situações mais prosaicas. O autor é "escolhido" pelo assunto, não o contrário. Quando parar de redigir, isso significará que os temas deixaram de considerar-me capaz de lidar com eles. Quanto à circunstância de que eles sejam o que são e não outros, isso explicar-se-á, talvez, por determinados estímulos exteriores encontrarem eco na minha mente mais facilmente que outros.
Há temas que o escolhem, então, com mais freqüência? Saramago Há que levar em conta a natureza pessoal do autor. Não tenho nada contra a alegria, mas sou e sempre fui melancólico. E tenho a veleidade de pensar que o ser humano cresce mais com a tristeza que com a alegria. Começando pelas crianças. Se uma criança está triste, melancólica, pensativa, deixemo-la em paz porque está a crescer.
Quer saber mais?
A Caverna, José Saramago, 352 págs., Ed. Companhia das Letras, tel. (11) 3707-3500, 39,50 reais
A Concepção de Língua de Saramago: O Confronto Entre o Dito e o Escrito, Miriam Rodrigues Braga, 112 págs., Ed. Arte & Ciência, tel. (11) 3257-5871, 33 reais
A Maior Flor do Mundo, José Saramago, 32 págs., Ed. Companhia das Letrinhas, 22 reais
A Paixão Segundo José Saramago, Conceição Madruga, 150 págs., Ed. Campo das Letras (Portugal), tel. (11) 3673-8406 (Livraria Portugal) 96,50 reais
O Evangelho Segundo Jesus Cristo, José Saramago, 448 págs., Ed. Companhia das Letras, 43 reais
O Homem Duplicado, José Saramago, 320 págs., Ed. Companhia das Letras, 37 reais
Saramago Segundo Terceiros, Lilian Lopondo, 232 págs., Ed. Humanitas, tel. (11) 3091.2920, só consulta
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