terça-feira, maio 25, 2010

Essa extraordinária Lya Luft - Reflexão

"Na arte como nas relações humanas, que incluem os diversos laços amorosos, nadamos contra a correnteza. Tentamos o impossível: a fusão total não existe, o partilhamento completo é inexeqüível. O essencial nem pode ser compartilhado: é descoberta e susto, glória ou danação de cada um - solitariamente.
Porém numa conversa ou num silêncio, num olhar, num gesto de amor como numa obra de arte, pode-se abrir uma fresta. Espiarão juntos, artista e seu espectador ou seu leitor - como dois amantes.
E assim, rasgando joelhos e mãos, a gente afinal vai.
Por isso escrevo e escreverei: para instigar o meu leitor imaginário -substituto dos amigos imaginários da infância? - a buscar em si e compartir comigo tantas inquietações quanto ao que estamos fazendo com o tempo que nos é dado.
Pois viver deveria ser – até o último pensamento e o derradeiro olhar - transformar-se.
O que escrevo aqui não são simples devaneios. Sou uma mulher do meu tempo, e dele quero dar testemunho do jeito que posso: soltando minhas fantasias ou escrevendo sobre dor e perplexidade, contradição e grandeza; sobre doença e morte. Lamentando a palavra na hora errada e o silêncio na hora em que teria sido melhor falar.
Escrevo continuamente sobre sermos responsáveis e inocentes em relação ao que nos acontece.
Somos autores de boa parte de nossas escolhas e omissões, audácia ou acomodação, nossa esperança e fraternidade ou nossa desconfiança. Sobretudo, devemos resolver como empregamos e saboreamos nosso tempo, que é afinal sempre o tempo presente.
Mas somos inocentes das fatalidades e dos acasos brutais que nos roubam amores, pessoas, saúde, emprego, segurança, ideais.
De modo que minha perspectiva do ser humano, de mim mesma, é tão contraditória quanto, instigantemente, somos.
Somos transição, somos processo. E isso nos perturba.
O fluxo de dias e anos, décadas, serve para crescer e acumular, não só perder e limitar.
Dessa perspectiva nos tornaremos senhores, não servos. Pessoas, não pequenos animais atordoados que correm sem saber ao certo por quê.
Se meu leitor e eu acertarmos nosso tom recíproco, este monólogo inicial será um diálogo - ainda que eu jamais venha a contemplar o rosto do outro que afinal se torna parte de mim.
Então a minha arte terá atingido algum tipo de objetivo."

LYA LUFT, em 'Perdas & Ganhos', 32ª edição, Editora Record, 2006, p.p 15/17

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