sábado, junho 12, 2010

FICA - Uma das mais belas crônicas de Amor que já li!

Fica
Joaquim Ferreira dos Santos

O que está escrito atrás do filme, do balé e da noite da Lapa

Ah, não me deixa. Está no novo filme de Wong Kar Wa, na nova coreografia da Deborah Colker, todos eles falando sobre abandono, traição e o jogo sujo da crueldade amorosa. Por favor. Olha. Escuta. Não faça o mesmo. Dói. Veja a multidão desesperada na Lapa, no Baixo Botafogo, todos dedicados ao jogo sem regras de pegar gente. Olhos em giroscópio, caçadores de almas. Não coloque mais um personagem na guerra selvagem dos apaixonados que deixam de sê-lo e, pronto, na cena seguinte tem mais alguém na grande comunidade dos solitários amargando o calvário tão moderno de estar abandonado, sequelado e todas as outras rimas de coitado. Mais um que abaixa a cabeça no tampo frio dos balcões e pede um pedaço da torta de blueberry que ninguém quis. São personagens bêbados pela falta de alguma explicação, vítimas de perplexidades amargas, de perguntas sem respostas, de telefones que emudeceram, de uma ausência que nada preenche. Ela. Ele. Alguém foi embora. Sem mais. Sem aviso prévio. Nem aí para mais um coração quebrado na sarjeta. Dói na garganta de cada um a possibilidade de ser o próximo a vagar, trêbado, as fichas brancas do AA no bolso da camisa, a repetir cabisbaixo, taciturno, esse mantra dos que, de repente, estava tão bom, ela dizia que me amava, ele dizia que era para sempre, de repente ficaram sozinhos. Por que? O que aconteceu? Fala. Responde. Atende o telefone. Eu vi todas aquelas portas batendo na cara de gente-como-a-gente no filme do Kar Wai, gente que só lhe quis tanto bem, e, eis-me aqui, antes que seja tarde, urge abrir o jogo, cantar os versos básicos daquela canção. Não se vá. Ouve só. Hora de repetir o balbuciar dos trágicos do Nelson Rodrigues. Olha. Presta atenção. Eu estava no cinema, logo depois na primeira fila do balé do Municipal. Senti o medo que permeia os bastidores sentimentais de todos esses artistas geniais, a certeza de que já aconteceu com eles também – e com quem não? Percebi que na hora do embate amoroso nós somos dois sem-vergonhas, leitores de "Capricho", "Ilusão", "Sétimo Céu" e "Grande Hotel", todos tementes que role na real o que agora acontece com os artistas na fotonovela, na tela e no palco. Acabou. Fui. Como se diz adeus para uma pessoa com quem você imaginou ficar a vida inteira? Como se percebe que aquele beijo foi o último e, ao contrário de todas as outras que faziam fechado, em "ohm", ela nunca mais lhe gemerá aos braços a felicidade aberta em "ahm"? Ninguém sabe a resposta. Há conselheiros vendendo livros sôfregos, oferecendo folhetins ansiosos com a promessa de solução. No las hay. As bruxas do desprezo e da rejeição, sim. Não há uma fórmula que se decore e amadureça para participar, sem dor, desse jogo de sinais. Não é war. Há quem diga que é adeus na lata. Há quem, um telefonema a menos hoje, um encontro menos empolgado amanhã, aos poucos vai mudando de trem e atracando em outra estação. Acontece de tudo, sofre-se das maneiras mais inéditas e sem vacina de prevenção. Uma dengue que dá no peito. Ninguém amadurece o suficiente para tirar de letra o aviso ou a falta dele. Fui. Não há bula. Nenhum genérico. No filme, uma porta se fecha sem qualquer explicação, sem sequer o último bilhete para fazer o acerto de caixa sentimental – e ela, e ele, nenhum dos dois nunca mais volta. Sofre-se. Os desassistidos, os descontinuados do amor. As mulheres mais lindas desta geração estão sozinhas, os rapazes mais espertos não sabem o que fazer. Foi aí que tocou o horror de se fazer súbito silêncio nos sete sinos da felicidade na porta do apartamento, foi aí que alguém, deu para ouvir daqui, gritou uma dor qualquer – e eu amplifico. Fica. Bateu o medo surdo-mudo de virar personagem de filme, virar coreografia de vanguarda, virar bolero antigo e depois ronronar sozinho pelas ruas, pelos estacionamentos, cantando a velha canção de Gullar e Caetano que Calcanhotto acabou de gravar. Onde andarás nesta tarde vazia? Em que bar, em que cinema, esqueces de mim? Por isso, todos os artistas sofrendo do mesmo pavor eterno do abandono, do olho da rua, do meio-fio dos cachorros babuchos, por tudo isso aqui se está, jogado aos seus pés, na tentativa desesperada de fugir da balada-paranoica que a todos consome e iguala. Não pica a mula. Não bate a porta. Fica comigo esta noite, a de amanhã também, e a do fim de semana será como no início de tudo, os mesmos sorrisos, um banho de morritos em todos os erres da crueldade da perda. Não te arrependerrás. Lá fora o frio é um açoite, calor aqui tu terás – e todas as outras músicas que falam das almas secretas de cada um. Acredita. Sente só. Não chore com a voz triste do Ottis Redding cantando ao fundo. Não se impressione com o jogo de faca dos que traem e abandonam. É só uma música do filme, uma cena impressionante do balé, e nada disso tumultuará o sono dos que querem dormir em conchinha de adoração positiva e nunca acordar para o pegapracapá dos sonâmbulos lá fora, dos deserdados amorosos rondando o quarto aquecido em que agora se está. Eis o único projeto possível. Ficar junto. Ganhar a Libertadores da América. Comer sardinha frita na Cadeg. Sussurrar no ouvido a promessa definitiva. Nunca mais as noites aflitas no Trapiche Gamboa, o dar mole no Carioca da Gema, o pisca-pisca do Orkut. Nunca mais vagar ao lado de todos os zumbis cegos pela rejeição amorosa, capazes de deixar a chave no balcão do Capela e esperar que ele, que ela, qualquer um dos tantos que já se foram, tenha uma crise de arrependimento e reconsidere. Abra a porta de novo. Perdão. Perdoa. Agora vai ser diferente. Nunca mais um motivo para beber. Pedir um traçado no balcão e perceber, no primeiro trago, que ninguém bebe aquilo por gosto – e, mesmo assim, o fígado pedindo tempo, ter vontade de pedir outro para dar um porre no passado. Afagar a dor. Foi a última dose. Nunca mais qualquer migalha noturna que sirva apenas para esquecer. O telefone vai tocar o lero, o bolero, o tango e todas as outras delícias sonoras da conversa dos amantes. Como você está vestido? Já comeu alfajor de maisena? Os filmes, os balés, os bares da Lapa. Nunca mais o 'procura-se' piscando néon na boca do peito de um Baixo qualquer, a bandeira cruel de que se está no mercado à cata do que quer que seja e – por favor ele acabou de pedir as contas, ela não telefonou mais – alivie a dor de um inverno já aparecendo na esquina. Sente só. Ouve. Escuta de novo esse bolero que toca desde o início e, ah, não me deixa.



Crônica publicada no Jornal O globo em 28 de abril de 2008

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