sábado, junho 12, 2010

A primeira senhora do campo

A primeira senhora do campo

Valor Econômico - 11/06/2010

"Sempre fui muito determinada", diz Kátia Abreu, do outro lado da mesa na Churrascaria Fogo de Chão, enquanto absorve delicadas fatias de fraldinha ao sal grosso, o seu bocado predileto da carne assada. "Adoro carne, sou carnívora." Totalmente dedicada em combater o "fundamentalismo", que, segundo ela, habita os círculos ambientalistas e os Ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário, não foi fácil introduzir na conversa assuntos alheios à sua militância ideológica. Senadora do DEM (ex-PFL) do Tocantins e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Kátia Abreu cumpre a missão para a qual foi eleita: faz o "lobbying" do agronegócio. E o faz com esmero, talento e, admita-se, determinação. O tempo inteiro, aparentemente. O Fogo de Chão da Avenida Bandeirantes - rede de churrascarias de elite pertencente a gaúchos da cidade de Encantado, com mais casas em São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Salvador - foi escolhido para este "À Mesa com o Valor" por causa da agenda carregada da senadora, que precisava almoçar perto do Aeroporto de Congonhas em São Paulo e participar ainda à tarde de reuniões em Brasília. Kátia Abreu aprovou a escolha do repórter e valeu-se da pressa para não perder o foco, permitiu ligeira abordagem de temas pessoais, mas fez o tempo esgotar-se antes do contraditório. Nada a estranhar nesse comportamento, pois é assim que se comportam políticos de sucesso - e Kátia é boa nisso.
- Vamos tomar um vinho?
- Vou ficar só na água, obrigada. Ela vota no tucano, mas gostou da irritação da petista com os ambientalistas. 
Solidários, repórter, fotógrafa e a assessora de imprensa da senadora conformam-se com a abstinência e as boas carnes passam, então, a ser o exclusivo encanto gustativo do almoço: picanha, costela, fraldinha, costeleta e paleta de cordeiro, lombo de porco, que agradam aos brasileiros e já conquistam americanos em outros 16 Fogo de Chão que a família de gaúchos espalhou pelos Estados Unidos, de Washington a Dallas. Exagero de carnes, precedido por profusão de saladas - nesta temporada, atração extra: pinhão cozido, descascado, cor-de-rosa, levemente salgado e tenro. Verduras, legumes, queijos justificariam a visita de um lactovegetariano à churrascaria, não lhe saísse a excursão muito cara, R$ 88 por pessoa. Na sua fazenda de 5 mil hectares, Kátia cria gado Nelore, robusto zebuíno branco de origem indiana que produz carne diferente, menos macia que o Angus deste almoço. "Angus é raça europeia, escocesa. Quando é pura, tem gordura entremeada na carne, igual ao cupim. Eu não gosto. No Brasil, fazemos o chamado cruzamento industrial, gado zebu com europeu. A gordura fica fora da carne, não dentro dela. E a carne é mais saborosa. Este Angus do Fogo de Chão não é puro, tem cruzamento. Outra vantagem é que se consegue antecipar o abate Aos 48 anos, Kátia Abreu lembra que foi urbana mais da metade da vida; vivia em Goiânia e, apesar de casada com o criador de gado Irajá Silvestre, jamais pretendera entender de boi gordo, inseminação, engorde, abate e exportação de carne.
- A senhora se formou em psicologia. Como foi isso de virar líder do ruralismo, guerreira, meio mandona?
- Antes quero pedir à Vandinha um relógio para nós. A que horas é o nosso voo?
A assessora põe o próprio relógio à frente da senadora e informa que há voos para Brasília às 14h56 e às 15h51 O repórter se intromete e sugere o segundo horário. A senadora decide-se pelo primeiro. - Minha entrada para a área rural foi resultado de uma tragédia. Acontece com a maioria das mulheres, elas se tornam fazendeiras sempre pela dor. Ou o marido morreu e ela herdou a fazenda; ou o pai morreu e ela herdou; ou separou-se do marido e ficou com um pedaço da fazenda. Poucas vão para o campo por amor: "Tenho aqui um dinheiro e vou comprar uma fazenda". Quando meu marido faleceu num acidente aéreo terrível, em 1987, ele tinha uma fazenda em Aliança do Tocantins, na região de Gurupi, a uns 240 quilômetros de Palmas, hoje Estado do Tocantins, mas que ainda era Goiás. Dezessete dias após a morte de Irajá, a mãe dele morreu também, de paixão. Mais seis meses e morre minha avó, que morava conosco. Nas minhas fantasias, cheguei a pensar que eu própria ia morrer, de parto. Kátia ocupa o terceiro lugar e é a única mulher numa fila de oito irmãos. Tinha um filho de 4 anos, outro de 1, e estava grávida de 2 meses ao ficar viúva, aos 25 anos.
- A família nem imaginava que eu não iria vender a fazenda. Era uma coisa decidida na cabeça deles. Pensavam até em abrir uma loja para mim em Goiânia. Estava me formando em psicologia na Universidade Católica e avisei que não, que iria para o desafio do campo. Coloquei a propriedade em nome dos filhos e passei a administrá-la como gestora. Repito, tenho alguns defeitos e uma qualidade: a determinação.
- E como foi essa experiência?
- Na minha terra, quando uma fazenda está muito feia, largada, as pessoas dizem: "Parece fazenda de viúva". Pois eu falei: "Isso não vai acontecer comigo". Eu me esforcei, aprendi tudo e superei o preconceito. Não deixei o negócio desandar e aumentei a produtividade. As pessoas passaram a me reconhecer como uma delas, uma empresária rural. Passados seis anos, fui eleita presidente do sindicato rural, em eleição duríssima. Enfrentei machismo, violência. Venci. Depois, é o que se sabe: ruralismo e política. Kátia foi, em seguida, eleita presidente da Federação da Agricultura do Tocantins e, em 1998, se candidatou a deputada federal pelo PFL. "Nunca mudei de partido, o PFL é que mudou de nome." Faltaram 500 votos e ficou com a primeira suplência, mas o governador Siqueira Campos distribuía alternadamente secretarias entre os deputados titulares para que Kátia os substituísse.
- Viravam secretários por sua causa?
- Não posso nem falar isso.
E foi assim que um(a) suplente acabou membro titular da Comissão de Agricultura da Câmara e líder da Frente Parlamentar da Agricultura no Congresso (bancada ruralista), então com 180 integrantes. Em 2002, elegeu-se finalmente deputada, com votos de 12,91% dos eleitores do Tocantins. Proporcionalmente, foi a terceira mais votada em todo o país; à sua frente, só Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) e o correligionário José Roberto Arruda (DEM). Em 2006, elegeu-se senadora e, dois anos depois, tornou-se a primeira mulher a presidir a CNA.
- Sua fazenda nunca teve problemas com os sem-terra?
- O MST nunca foi forte por lá. Desde os dois mandatos de Siqueira Campos e o de Marcelo Miranda no governo do Estado, a reintegração de posse sempre foi muito rápida. Então eles se intimidam e evitam os Estados em que os governadores cumprem a lei. O MST prefere invadir onde os governadores afrouxam, como em Pernambuco.
- Não ocorre o mesmo em São Paulo? Tantos anos de governo do PSDB e é permanente o conflito no Pontal de Paranapanema...
- Não. Lá existe um litígio antigo e eles teimam em dizer que são terras públicas. Na realidade, o Brasil inteiro foi terra pública, não é? Então precisa de uma regulamentação, privatizar a área para que a produção se estabeleça, e isso está sendo providenciado. As reintegrações de posse em São Paulo têm acontecido de forma imediata. Mas aqui é o foco da mídia. Quem quer aparecer, armar confusão, vem para São Paulo, como esse Rainha [José Rainha Júnior, dirigente afastado do MST no extremo oeste do Estado]. O que acontece aqui vira notícia, tem holofote em cima.
Toca o celular. A senadora atende. "Só um minutinho. É o Reginaldo, preciso terminar um artigo para a Folha ... (T) Alô? Oi, Reginaldo." Percebe-se que Reginaldo é um assessor da CNA e fala de Brasília. "Reginaldo, vamos lá: quanto, porcento, a União gastava em 2000 com a saúde e quanto gastava em 2007? Tem uma tabelinha aí, escrita à mão, está dentro dessa pastinha, usei no discurso que fiz para os prefeitos, pode procurar e me liga de volta, ok? Até mais."
Kátia desliga e comenta: "O governo do presidente Lula gastava, quando ainda tinha a CPMF, menos em saúde do que no tempo do Fernando Henrique. No ano 2000, a União participava do bolo do gasto da saúde com 60%. Em 2007, 45%. E tem a PEC 29, Emenda Constitucional, iniciativa do governo, que deveria aumentar os recursos para a saúde. Aumentou? Não. A saúde está tendo prejuízo. A regulamentação estacionou no Congresso e o governo não tem interesse em votar. Hoje os recursos da saúde são de R$ 56 bilhões. Se se mantivesse a metodologia anterior, seriam uns R$ 119 bilhões. Mas o governo prefere gastar R$ 40 bilhões com o funcionalismo."
- Caramba! - É Vanda, escandalizada.
Kátia aponta o dedo para o alto:
- E a Dilma diz que o que falta é a CPMF...
O rodízio, rápido demais, impacienta a senadora. "Por favor, moço. Vá um pouco mais devagar, deixe-nos conversar. Se quiser mais alguma coisa, eu peço." - Como está o Código Florestal? A senhora e o deputado Aldo Rebelo, do PCdoB de São Paulo, têm feito uma afinada parceria.
- O Aldo é um exemplo muito interessante para o Brasil, para quebrar aquele paradigma de que quem é de um partido de esquerda é contra tudo e todos. A gente se entende não é de agora. Gosto de repetir que, se não fosse Aldo Rebelo, ainda não teríamos transgênico funcionando no Brasil.
Como relator e presidente da Câmara, o deputado fez aprovar, no início do governo Lula, um substitutivo sobre a nova lei de biossegurança que satisfez Kátia e o agronegócio. Dirigente de um partido que pregava a coletivização da propriedade rural e promoveu uma guerrilha maoísta a apenas 500 quilômetros ao norte da fazenda da hoje presidente da CNA, Rebelo está novamente aliado a Kátia Abreu. Como relator do novo Código Florestal, Aldo propôs que os Estados, e não a União, estabeleçam os limites mínimos de reserva legal e a redução de 30 m para 7,5 m na área de preservação à beira dos rios.
A senadora não poupa o que chama de "eles" e entre esses inclui os líderes dos sem-terra, os ambientalistas de dentro e fora do governo e os ativistas que tumultuaram a apresentação do relatório de Rebelo e lhe mostraram o cartão vermelho, como se isso fosse ofensa a um dirigente comunista.
- Eles querem criminalizar, transformar a produção de alimentos em alguma coisa do mal. Nos acusam de destruir a mata atlântica, o cerrado, a floresta amazônica. Mas não as transformamos num nada, num vento. Transformamos em comida, emprego, exportações, PIB. Se o ser humano precisa de ambiente equilibrado, precisa de comida também. Ninguém vive sem as duas coisas. Dou um número oficial: O Brasil tem 56% de toda sua área de forma original, mata nativa.
- E isso é muito ou pouco?
- A Europa tem 0,1%. Brasil é o segundo no mundo. A Rússia é o primeiro e o Canadá, o terceiro. Sabe por quê? Lá é só neve, por isso não desmataram tudo. Os Estados Unidos têm 26%. Na África, hoje, 7,5%; na Índia 5 e pouco. Então, quando digo que somos a maior agricultura do planeta e a mais moderna, falo de preservação de biomas, produtividade, eficiência e excelência. A mão que produz é a mesma que preserva.
- Quer dizer, então, que nossa agropecuária não é predatória?
- Predatória? Isso é calúnia, mentira interesseira, nociva ao país, xiita. Mais grave ainda é a atitude de quem não quer debater a questão ambiental...
- Exemplo...
- A maioria das ONGs, o Ministério do Meio Ambiente, o pessoal do Incra... Quer um exemplo? Em março a CNA lançou o seu Projeto Biomas, um conjunto de ideias e iniciativas práticas para aperfeiçoar a produção e preservar a natureza nos seis biomas brasileiros, Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal. Em cada bioma, a Embrapa vai indicar uma fazenda com as características típicas da região para servir de vitrine tecnológica, uma espécie de grande e moderna estação experimental. Não vai ser a minha fazenda nem aquela que ninguém quer. O que for desenvolvido ali será replicado pelo país. Convidamos as ONGs, o ministro do Meio Ambiente, todo mundo, para conhecer o projeto. Sabe quantos apareceram? Ninguém, zero! Ninguém precisa ir aonde a CNA convida, mas está clara a má vontade para o diálogo.
- É boa a sua relação com a Embrapa?
- A Embrapa tem colaborado. O Projeto Biomas é dela. E agora começaram a acusar a Embrapa de estar vendida aos ruralistas. É a prática de denegrir quem não está de acordo com eles, dividir a agricultura entre bons e maus. Criticam, por exemplo, a Fundação Getúlio Vargas porque fez um amplo e sério estudo que desmente a farsa de que a agricultura familiar é mais produtiva que o agronegócio. Infelizmente, a agricultura familiar é responsável por apenas 23% dos alimentos produzidos no país. O pequeno agricultor é um herói, sua participação no valor bruto da produção é até muito, diante da falta de assistência técnica e das dificuldades de comercialização...

- Apesar das divergências com o governo, a senhora apoiou em 2009 a MP da titulação de terras na Amazônia, que alguns chamam de legalização da grilagem.
- Fui a relatora e apoiei porque significou avanço na segurança jurídica. Os desmatamentos não eram punidos porque as pessoas não eram identificadas, as terras não tinham dono. A Medida Provisória do Lula passou contra os votos do PT no Senado, inclusive da Marina Silva e do Aloizio Mercadante.
- A CNA não se entendia muito bem com a Marina. E com o sucessor dela no Meio Ambiente, Carlos Minc?
- O Minc mudou muito. No início, o relacionamento foi ótimo. Fui relatora do orçamento do Meio Ambiente e tripliquei os valores que pediu. Ele me agradeceu muitíssimo. Depois, acho que se viu em dificuldade eleitoral no Rio e chamou os produtores rurais de vigaristas. Já com a nova Ministra, Isabela... como é mesmo o nome dela?
... Isabela Teixeira, o relacionamento é bom. Convidei-a para conhecer o Projeto Biomas. Falta só agendar.
- Carlos Minc, do PT; Fernando Gabeira, do PV, do PSDB e do DEM, qual é a diferença?
- Gabeira é muito inteligente. Ele foi a um debate na CNA com o João Paulo Capobianco [vice-ministro do Meio Ambiente na gestão de Mariana Silva]. Maravilhoso, debate de alto nível. O próprio Capobianco agradeceu e disse: "Quem diria, eu aqui, na CNA!" E eu disse: "Quem diria, eu convidar você para a CNA!"
E como eram as relações da CNA com a Ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff? 
- Percebi na Ministra Dilma certa irritação com essa radicalização no que diz respeito à questão ambiental relacionada com as obras do PAC, de infraestrutura. Mas essa irritação poderia ter sido transformada em uma ação mais efetiva de mudança de comportamento e de mudança de leis dentro do Congresso Nacional. Se o fundamentalismo está empatando a produção de alimentos e empatando o progresso da infraestrutura, alguma coisa está errada e tem de ser mudada.
A assessora mostra o relógio, Kátia Abreu serve-se de uma fatia de manga, suave e doce, e o almoço está encerrado. Já de pé, a senadora preserva a fidelidade partidária, que manda apoiar e confiar na vitória de José Serra. "Eleição dura, mas o Serra é favorito."
- E a senhora pode ser vice?
- Recusei até mesmo a chance de governar meu Estado, apesar das possibilidades de vitória. Estou comprometida a continuar presidente da CNA e a exercer bem o mandato de senadora. É a minha determinação.

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