sexta-feira, outubro 01, 2010

A união ibérica

A união ibérica
Saramago e Pilar, íntimos, solenes, engraçados
Arthur Dapieve – O Globo
José Saramago liga o portátil em sua casa na ilha de Lanzarote. Alonga os braços.
Boceja enquanto espera o computador carregar os programas. Olha para os lados. Afinal leva as mãos ao teclado. Em qual obra-prima estará a trabalhar? “O evangelho segundo Jesus Cristo”? Ou será “Ensaio sobre a cegueira”? Não, claro que é “A viagem do elefante”. É um momento ao mesmo tempo íntimo e solene, o de se assistir ao prêmio Nobel de Literatura em pleno exercício de sua arte. Então, a câmera assume o ponto de vista do escritor e nos mostra a tela. José Saramago joga paciência.
A cena está bem no começo de “José e Pilar”, documentário do português Miguel Gonçalves Mendes sobre seu conterrâneo autodesterrado e a esposa espanhola, Pilar del Río. A parte do jogo de paciência representa o todo: o filme que teve calorosa estreia mundial no sábado passado, aqui no Festival do Rio, é todo íntimo, solene e bemhumorado.
O casal Saramago franqueou sua casa encravada na paisagem extraterrena das Canárias e a dura rotina de palestras, premiações e autógrafos pelo mundo — ainda mais dura para um octogenário doente — e Mendes teve a sensatez de não ser invasivo.
É uma espécie de reality show recatado e com gente interessante.
“José e Pilar” entra em circuito em Portugal e no Brasil já em novembro, mês de aniversário do escritor. Seus 130 minutos são o suprassumo das 240 horas da filmagem de três anos, de 2006 a 2009. O tom é bem diverso do tom do corte de meia hora apresentado noutro sábado à noite, no começo de agosto, na Flip, na qual este que vos digita mediou um encontro com o diretor de 32 anos. A amostra era mais sombria do que o produto final. Ri-se bastante durante a projeção, exceto, naturalmente, quando Saramago está internado no hospital, na virada de 2007 para 2008, e quando ao fim nos lembramos de que o grande escritor morreu, em junho passado. Ainda nos é impossível estimar a importância de Saramago para o idioma português.
Quando o descobri, em “Memorial do convento”, há quase 30 anos, pensei: “Uau, a minha língua também pode ser assim!” Não que ninguém jamais pudesse ser estúpido a ponto de macaquear-lhe o estilo, mas ele com certeza nos impôs novos desafios. Essa mestria era desprezada por críticos furibundos sempre que o mui comunista Saramago atacava o capitalismo ou, sobretudo, a religião. Em “José e Pilar”, atores leem em off trechos de cartas recebidas quando da publicação de “O evangelho segundo Jesus Cristo”. Uma das vozes, com sotaque brasileiro, lamenta que a Inquisição tenha acabado, porque desejava assistir de camarote à incineração do escritor. Outra, espanhola, excomunga a senhora “Sara Mago”.
O documentário de Mendes, porém, não é sobre as obras de Saramago. O diretor reitera nas entrevistas que essa exegese fica para os livros de teoria literária. Já a partir do título, seu filme declara ser sobre um casal, decerto um casal ímpar, mas ainda assim um casal.
Tanto que, a princípio, o título irônico seria “União ibérica”. Irônico porque portugueses e espanhóis historicamente não se dão bem, o que origina um ditado como “da Espanha não vem nem bom vento nem bom casamento”.
Dessa forma, muita gente em Portugal enxerga em Pilar uma Yoko Ono de castanholas, culpada por levar embora do país o seu maior escritor. Pela mesma desrazão, em “José e Pilar”, um jornalista português insiste em fazer a ela uma pergunta grosseira sobre a “alta proporção de homossexuais na Espanha” e se isso não tornaria difícil arrumar marido no país vizinho.
A diferença de idade entre Saramago e Pilar sempre foi outra fonte de desconfiança. Ele morreu aos 87 anos. Ela hoje tem 60. Vinte e oito anos os separavam, mas tudo o mais os aproximava. E seu casamento, mesmo que não tivesse sido útil para mais nada, para inspirar o escritor, para organizar sua agenda, para jogá-lo no seio de uma grande família andaluz, teria ao menos servido para ensejar uma frase tão bonita quanto “se eu tivesse morrido aos 63 anos, antes de te conhecer, teria morrido muito mais velho do que quando chegar a minha hora”. Saramago não era apenas um grande romancista, era também um grande frasista, coisas que nem sempre andam juntas.
“José e Pilar” evita qualquer discurso sobre a literatura, sim, mas reflete um pouco os volumes de não ficção “Cadernos de Lanzarote” e “As pequenas memórias” em seu acompanhamento do dia a dia do casal. O filme está coalhado tanto dos momentos de carinho quanto das reflexões pessimistas do escritor, um antídoto à overdose mundial de Prozac. É como se Saramago vivesse a recitar, num mau humor divertido, versos perdidos da “Tabacaria” de Pessoa. Este mundo deu errado, não existe céu, a existência é brutalmente passageira, o universo jamais saberá que Homero escreveu a “Ilíada”, ó vida, ó dor, isso não vai dar certo.
Seu casamento com a bonitona Pilar, contudo, deu certo. E o documentário de Mendes ilustra esse sucesso. Noutra cena, Saramago está prestes a ser entrevistado por uma rádio espanhola. Pilar se debruça sobre ele, no escritório de Lanzarote, para ajeitar o telefone e os pesados fones de ouvido. Consciente da presença da câmera, ele disfarça, dá uma olhadinha para a bunda da mulher, dá-lhe uma palmadinha, continua a olhar, de soslaio, fazendo-se de sonso. É isso. Amar é... Olhar a bunda da própria mulher.
E-mail: dapieve@oglobo.com.br

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