domingo, maio 30, 2010

Democracia sem olhar para trás

Democracia sem olhar para trás

Wilson Figueiredo

JORNAL DO BRASIL DOMINGO, 30 DE MAIO DE 2010
Passou sem ser percebido, talvez à moda mineira, um dado digno da maior consideração às vésperas de se desencadear a campanha presidencial. Não é segredo, e muito menos coisa desprezível, que os dois candidatos à frente nas pesquisas de opinião pública são oriundos da esquerda, na qual se formaram e dela se afastaram o suficiente para não comprometerem a taxa democrática de cada um. É de se supor que Dilma Roussseff e José Serra, em duas gerações de equivalente iniciação política através de períodos históricos com características opostas um sob a Constituição de 1946, outro sob o AI-5 tenham se identificado com a militância política de esquerda e apresentem saldo suficiente em favor da democracia.
A pequena e ocasional convergência entre José Serra e Dilma Rousseff se deve menos à evolução política para a esquerda do que ao esgotamento do exaurido padrão brasileiro de fazer política à moda tradicional, para não dizer pior. Apenas para salvar aparências, a diferença entre os candidatos em cena se reduz ao mínimo. Ganhe quem ganhar, essa diferença custa barato. A questão se situa praticamente na economia, e no que for acessório. Por último, conviria realçar a contribuição histórica do presidente Lula, cuja carta aos brasileiros lhe abriu crédito na classe média, colocada mais embaixo na escala social, e lhe valeu a eleição e a reeleição. A burguesia leu tudo nas entrelinhas, nas quais não está escrito mas subentendido. Nada, porém, com a esquerda, da qual quer distância. A fórmula clássica é eleger-se pela esquerda e governar pela direita. Não falha. Lula já está longe.
A exposição das candidaturas José Serra e Dilma Rousseff deve ter em vista mais cuidado para os dois não perderem a esquiva confiança da classe média, que emergiu do anonimato na onda da democracia que fala por si mesma e pela eleição direta. Chega de citações entre aspas retiradas da teoria e não perfilhadas pela realidade. A sucessão presidencial tem dialeto próprio, e fala por si mesma a circunstância de serem José Serra (pelo PSDB) e Dilma Rousseff (pelo PT) candidatos de mais alta cotação nas pesquisas. Trata-se do Brasil pós-Lula, queira ou não o presidente. Dissipou-se o velho medo de que a esquerda venha cobrar mais do que se dispõe nossa vã democracia a pagar.
Dilma e Serra estão, portanto, dispensados de demonstrar e se desculpar por terem tido iniciação política pela esquerda. A diferença (que não é pequena) entre eles se deve a circunstâncias políticas anteriores às respectivas candidaturas e a condições históricas adversas, pois em 1968 a geração que queria se inserir (vá lá) no processo se recusou a aceitar que a solução tivesse de ser política, e apostou o que não tinha em projetos revolucionários. Ao contrário, a geração já adulta dos jovens que haviam apostado na Constituição de 1946 estava preparada para a prova de paciência política, e se dispôs a desgastar o poder autoritário com paciência, coerência e resignação até a apoteótica derrota do regime e seu candidato na eleição indireta. José Serra aprendeu política com a esquerda que apostou na arte do possível. Na etapa seguinte, a geração de Dilma Rousseff viu no AI-5 a oportunidade de ir mais longe do que ter como prêmio de consolação uma Constituição burguesa. Ficou pelo caminho. De volta do exílio, Serra se apresentou e participou de um jogo que também será eterno enquanto durar.
Depois de cumpridos quatro mandatos de presidentes pelo voto direto, o Brasil se considerou em condições de eleger Lula. E o fez. Nada aconteceu que justificasse o temor tradicional. Os dois candidatos que marcam passo nas pesquisas devem ter aprendido que é perfeitamente possível conciliar esquerda e democracia mediante o uso de ferramentas legais. Cumpre-lhes demonstrar com atos que é contraproducente o medo da democracia. Pelo menos enquanto a vida política brasileira não se distanciar de um ponto, ainda não localizado, em que as imperfeições ponham em risco a estabilidade política. A impressão é que o país acelerou suas possibilidades, e aquele que olhar para trás corre o risco de virar estátua de sal.

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