Marina Silva: "O Brasil precisa antecipar o futuro"
A candidata do PV quer encarnar os valores da política do século XXI: ética e desenvolvimento sustentável
Mariana Sanches
Havia apenas duas coisas que Marina Silva desejasse quando era criança. A primeira, diz ela, era andar nos aviões que via sobrevoando a selva acriana onde nasceu. A segunda era ter uma fotografia sua. “Agora o que mais tenho feito é andar de avião e tirar foto”, disse Marina, na tarde da quinta-feira, ao se despedir de um rapaz que posara a seu lado para um retrato feito com celular no corredor do Senado. As viagens e as fotografias são parte do esforço de Marina para viabilizar sua candidatura à Presidência pelo Partido Verde. Ela tem corrido o Brasil tentando convencer os eleitores de que “não há nada mais potente do que uma ideia cujo tempo chegou”, como gosta de repetir, citando o poeta francês Victor Hugo. Marina flerta com o improvável. Na infância sobreviveu a cinco malárias, três hepatites e uma leishmaniose. Agora, com escassos 8% das intenções de voto e o menor tempo de TV entre os três principais candidatos, ela tem pela frente o desafio mais difícil da carreira. Com 52 anos e 51 quilos, se diz preparada. Em seu gabinete, no Senado, Marina falou a ÉPOCA sobre planos para um futuro governo e sobre suas memórias.
ENTREVISTA - MARINA SILVA
QUEM É Nascida em um seringal no Acre, Marina Silva alfabetizou-se aos 16 anos pelo antigo Mobral. Tem 52 anos
CARREIRA POLÍTICA Foi vereadora em Rio Branco, deputada estadual no Acre e está no segundo mandato como senadora. Foi ministra do Meio Ambiente entre janeiro de 2003 e maio de 2008
PRÊMIOS Em 2007, recebeu o prêmio Champions of the Earth, da ONU, por sua luta pela preservação da Floresta Amazônica
ÉPOCA – Por que a senhora deve ser a próxima presidente do Brasil?
Marina Silva – Uma das coisas mais importantes na vida de um país é a capacidade de preservar as conquistas e, ao mesmo tempo, ter uma visão do futuro. Conseguimos algumas conquistas: estabilidade econômica e avanço na política social, mas as pessoas estão tratando isso como se fosse o fim da história, estão perdendo a capacidade de antecipar o futuro. E o momento privilegiado para fazer a integração entre o passado e o futuro é a eleição. Sei que o Brasil está preparado para ter uma mulher na Presidência. Uma mulher capaz de integrar o olhar feminino ao olhar masculino, a intuição e a racionalidade, e de colocar novos valores na política.
ÉPOCA – Há espaço para a defesa da “sustentabilidade” no Brasil, um país em que grande parte das pessoas não tem creche para deixar os filhos?
Marina - A ideia da sustentabilidade é um imperativo. O povo tem uma sabedoria bem maior do que as lideranças políticas. As pessoas podem até não transformar em palavras aquilo que sentem. Mas elas se colocam em movimento para fazer. É assim que as grandes transformações acontecem. Foi assim que aconteceu na África do Sul, foi assim com Martin Luther King nos Estados Unidos.
ÉPOCA – Suas propostas são equivalentes às de Luther King?
Marina - Eu não seria pretensiosa a esse ponto. Falo como uma metáfora histórica. Até porque essas ideias não são minhas. São fruto de 30 anos de luta socioambiental no mundo. Hoje os processos são multidimensionais e as lideranças são multicêntricas.
ÉPOCA – A senhora fala de modo muito complexo. As pessoas a entendem?
Marina - Entendem. Lá no meio do seringal, com o Chico Mendes, quando começamos a ouvir falar sobre ecologia e meio ambiente, alguém poderia ter dito para o Fernando Gabeira [deputado federal (PV-RJ)]: “Vocês acham que esses seringueiros vão entender isso?”. Nós entendíamos tudo porque nós já fazíamos aquilo que eles diziam em palavras.
ÉPOCA – O economista Eduardo Gianetti está colaborando com seu programa de governo e é conhecido como um liberal. Sua trajetória é de ligação com movimentos sociais. Por que estão juntos agora?
Marina - Ele é um pensador, um economista que elabora para além das questões da economia. Fiquei muito bem impressionada com a forma como ele vê o desafio da sustentabilidade à luz desse esforço de transitarmos para um novo modelo de desenvolvimento. Quem foi que disse que as pessoas têm de pensar da mesma forma em tudo?
ÉPOCA – Seu governo será de esquerda?
Marina - A gente empobrece o debate com essas caracterizações. Não vejo ninguém me cobrando que meu governo seja de esquerda. Aliás, não vejo ninguém cobrando isso nem do presidente Lula. A gente tem de cobrar do governo que ele seja justo, honesto, comprometido com os princípios republicanos.
ÉPOCA – Como vê a reforma agrária e as ações do Movimento dos Sem Terra?
Marina - A gente tem de separar as duas coisas. A luta pela reforma agrária é legítima. No Brasil não se teve o atendimento dessa questão histórica, mas a forma de lutar por ela não pode extrapolar o Estado Democrático de Direito. Aqueles que não extrapolam têm o direito de se expressar. Aqueles que extrapolam não podem ser tolerados. Mas também não dá para generalizar a luta dos sem-terra como se todos estivessem extrapolando. Da mesma forma que não vejo ninguém generalizando em relação aos ruralistas, que muitas vezes usam da jagunçagem para se contrapor à reforma agrária.
ÉPOCA – A senhora teve rusgas com o ex-governador de Mato Grosso Blairo Maggi. Como a senhora vê o agronegócio?
Marina - A agricultura é importante para o nosso país, é responsável por mais de 30% da nossa balança comercial. Ainda temos ruralistas que não se conectaram a duas coisas: o respeito ao meio ambiente e aos direitos sociais conquistados na Constituição de 1988. Mas não se pode demonizar todo o agronegócio. Temos é que combater aquela cultura que, em lugar de passar no teste, fica tentando mudar o teste. Precisamos deixar de ser vistos como aqueles que produzem em prejuízo do meio ambiente e das questões sociais. Isso vai ser uma vantagem na disputa com aqueles que tentam nos prejudicar no mercado externo com barreiras não tarifárias.
ÉPOCA – A escolha do empresário Guilherme Leal para ser seu vice é uma tentativa de conquistar o empresariado?
Marina - Tem uma parte do empresariado que está com a Dilma, uma parte com o Serra. E uma parte do empresariado, de vanguarda, pessoas que já estão atualizando seus negócios, que estão muito próximas a mim e ao Guilherme. A gente não pode ter pretensão de unanimidade e se fechar ao diálogo.
ÉPOCA – A senhora teve divergências com a ex-ministra Dilma Rousseff. Uma delas foi em torno da construção das hidrelétricas no Rio Madeira. Para Dilma e Lula, o meio ambiente é uma questão menor?
Marina - No processo de licenciamento do Madeira, tinha o problema do mercúrio, do sedimento, da malária e o famoso problema dos bagres. As informações técnicas de que dispúnhamos diziam que o lago do empreendimento estaria 50% assoreado em dez anos. Quem daria uma licença ambiental sabendo que se estava gastando bilhões de reais numa hidrelétrica cujo lago poderia estar assoreado em dez anos? Esse problema foi resolvido com uma resposta técnica. A divergência acontecia, mas era debatida de igual para igual. E, quando tinha de ser decidida, era o presidente Lula quem arbitrava. Quando nós dissemos que não daríamos a licença no dia que o Ministério de Minas e Energia queria, o Lula disse: “Então quero que contratem os melhores técnicos para que a gente resolva as duas coisas: a questão do meio ambiente e a da energia”. E foi isso o que a gente fez.
ÉPOCA – Mas então por que o presidente fez piada sobre os “bagrinhos”? Foi uma desmoralização para a senhora?
Marina – Eu não me sinto desmoralizada porque a posição foi mantida. Uma divergência real e objetiva foi aquela pela qual eu saí do ministério. Havia um movimento pra revogar as medidas de combate ao desmatamento. Houve pressão do Mangabeira (Mangabeira Unger, ex-ministro de Assuntos Estratégicos), do Stephanes (Reinhold Stephanes, ex-ministro da Agricultura), do Blairo Maggi contra os dados que tínhamos do Instituto de Pesquisa Espacial (INPE). Eles diziam que os dados estavam errados, contrapondo com os da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso, que não tem know-how e tinha acabado de ser criada. Percebendo que poderiam induzir o presidente Lula a um erro, eu pedi para sair. Saí respeitosamente e acho que, graças a Deus, contribuí para que o governo não cometesse o erro gravíssimo de revogar as medidas e o desmatamento voltasse a crescer.
"Não sou contra hidrelétricas. Mas não podemos
relativizar os problemas sociais e ambientais"
ÉPOCA – Mas o recorde de menor desmatamento foi batido na gestão do ex-ministro Carlos Minc. Ficou a impressão de que a senhora era intransigente e não cumpriu as metas, mas alguém com mais articulação política conseguiu.
Marina - Nós fizemos coisas muito consistentes. O desmatamento, que estava em 27.000 quilômetros quadrados em 2004, caiu para 12.000 quilômetros em 2007. Em 2007, como as agendas de outros ministérios para o combate ao desmatamento não estavam andando, percebemos que o desmatamento podia crescer 30%. Nós tomamos as seguintes medidas: vedamos o crédito, decretamos moratória em 36 municípios e criminalizamos toda a cadeia produtiva – quem derruba, quem planta, quem vende, quem compra e quem transporta. O presidente Lula corajosamente assinou, e aí veio aquela pressão do Blairo Maggi dizendo que nós tínhamos exagerado na dose. Eu percebi que podiam revogar as medidas. Eu saí, e o presidente Lula veio a público dizendo que não ia mudar nada na política ambiental e que as medidas seriam mantidas. Mas ele só fez isso porque a opinião pública deu sustentação. Senão elas seriam revogadas.
ÉPOCA – O sucesso do Minc se deve a sua herança?
Marina - Ele deu continuidade a partir de onde pegou. Eu não poderia torcer jamais para que o desmatamento aumentasse na gestão do Minc. O desmatamento caiu não por negociata política, mas em função da moratória, da criminalização da cadeia produtiva e da fiscalização.
ÉPOCA – Existe um modelo de desenvolvimento viável sem a construção de hidrelétricas na Amazônia?
Marina - O potencial de hidreletricidade é muito grande e 64% dele está na Amazônia. Não tenho uma posição de ser contra hidrelétricas. É um potencial que devemos usar. Mas o que não podemos fazer é relativizar na construção das usinas os problemas sociais e ambientais.
ÉPOCA – Como vê a construção da Hidrelétrica de Belo Monte?
Marina - Fui a favor da suspensão do leilão porque os índios dizem que não foram ouvidos adequadamente. Estão preocupados com o Rio Xingu, com suas terras e com o impacto social da chegada de mais de 100 mil pessoas na região. No processo, surgiu outro problema grave: a viabilidade econômica de Belo Monte. O governo está praticamente subsidiando Belo Monte, com uma série de desonerações, isenções de impostos.
ÉPOCA – A senhora manteria o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)?
Marina - O PAC não é um programa de infraestrutura. É uma colagem de várias obras, muitas delas importantes e estratégicas, demandas de governos estaduais e da sociedade brasileira. O que eu faria é transformá-lo em um programa.
ÉPOCA – Por que não é um programa?
Marina - O PAC não tem um planejamento por trás. São obras que são demandadas alhures, a partir das necessidades que cada um vai apresentando. Mas não tem uma projeção do crescimento do Brasil para daqui 20, 30 anos. O que se faz no PAC? Gerenciamento para ver se o dinheiro está sendo alocado direito, se há o projeto técnico básico para fazer, se tem a licença ambiental.
ÉPOCA – Chamar essa colagem de PAC é um recurso marqueteiro?
Marina - Eu não seria tão agressiva. É um nome fantasia, mas não é um programa.
ÉPOCA – Por que a senhora tem reservas em aceitar apoio do Partido Democratas?
Marina - Não tenho nem por que recusar, porque nós não estamos em nenhuma aliança com o DEM. Mas não há uma identificação programática com esses partidos, e nós resolvemos não fazer um cálculo pragmático. Nós queremos ver as questões programáticas no palanque para a Presidência da República para que esse projeto possa ser colocado com a relevância, a magnitude e a coerência que ele precisa. No Rio de Janeiro não é o Gabeira quem apoia o DEM, é o democrata que apoia o Gabeira.
ÉPOCA – O Gabeira disse que no segundo turno apoiará o candidato José Serra. É um indício de que ele não acredita que sua candidatura é viável?
Marina - Tenho uma relação de 20 anos com o Gabeira. Ele me deu os rudimentos da questão ambiental. Ele está muito imbuído do nosso projeto nacional.
ÉPOCA – A senhora estudou para ser freira e agora é evangélica da Assembleia de Deus. Por que a senhora se converteu?
Marina - A conversão é um processo que só tem explicação para quem vive a experiência. Eu tenho um respeito e carinho muito grande pelos meus irmãos católicos. Toda a minha formação política, minha base ética, eu aprendi com a Teologia da Libertação. Tenho imensa gratidão pela minha fé católica.
ÉPOCA – A senhora acha que sofre preconceito por ser evangélica?
Marina - Há um estranhamento que às vezes resvala para o preconceito. Eu sinto que as pessoas às vezes querem achar que pelo fato de você ter fé você tem de necessariamente ser fundamentalista, conservador.
"Não preciso justificar a minha fé cientificamente,
aqui no Brasil, graças a Deus, temos um Estado laico "
ÉPOCA – Como a senhora lida com a contradição entre ciência e religião?
Marina - Não se deve opor ciência a religião. Não preciso justificar minha fé cientificamente. E também não preciso transpor a fé para os espaços da ciência. Aqui, graças a Deus, somos um estado laico. Aqui, graças a Deus, temos mais de 90% das pessoas que têm fé e têm de aprender a respeitar quem não tem fé. E os que não têm fé respeitam os que têm fé. Isso faz da gente uma democracia religiosa, graças a Deus.
ÉPOCA – O criacionismo é uma coisa que está completamente afastada de sua plataforma para a educação?
Marina - Eu nunca defendi o criacionismo. Eu defendi exatamente o contrário: uma escola confessional que ensina o criacionismo e o evolucionismo.
ÉPOCA – A senhora é a favor da legalização do aborto?
Marina - Eu não sou a favor. E eu defendo um plebiscito para isso. Não é uma questão fácil e deve ser debatida pela sociedade. E que não se tenha uma visão de que quem é a favor da vida é fundamentalista. E também que não se tenha uma visão de que os que têm outro ponto de vista são moralmente degradados.
ÉPOCA – E quanto à descriminalização das drogas?
Marina - Sou contrária e acho que se deva fazer também um plebiscito.
ÉPOCA – E as pesquisas com células-tronco?
Marina - Defendo pesquisas com células-tronco adultas, mas não com embriões.
ÉPOCA – A senhora adotou o estilo Marininha Paz e Amor?
Marina - Não é só na campanha. É uma forma de vida. Quando se vê a morte por três vezes na sua frente, quando se chega tão perto de voltar ao pó, a gente sabe que o mais importante é a vida.
ÉPOCA – Por que gostou de Avatar?
Marina - Serve como exercício da alteridade estética, poética, ética. As populações tradicionais têm uma estética própria, uma cultura própria e uma ética de valores própria. Eu fiquei impressionada como o James Cameron (o diretor do filme) conseguiu entrar num universo tão difícil de penetrar. E eu só pude compreender depois que eu soube que ele, desde criança, tinha uma convivência muito próxima com as florestas do Canadá. As pessoas disseram que a narrativa era pobre. Mas ali não estavam em jogo as palavras, mas algo mais sutil. O filme é uma tentativa de mostrar plasticamente o que se sente quando se entra na floresta.
ÉPOCA – A senhora tem medo de quê?
Marina - O meu maior medo, eu acho que já venci, é o medo de não ter medo.
ÉPOCA – E se arrepende de quê?
Marina - Eu me arrependo de ter acreditado naqueles médicos que disseram que a minha mãe tinha meningite. Ela morreu com aneurisma. E me arrependo de não ter trazido o corpo dela para que pudéssemos enterrar, de nunca mais tê-la visto. Ela foi enterrada sem que nós a víssemos. Eu tinha 14 anos.
ÉPOCA – E a senhora se lembra da última coisa que ela lhe disse?
Marina - Estou com muita dor de cabeça: corte umas rodas de macaxeira que eu vou amarrar na minha cabeça.
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