domingo, maio 30, 2010

Uma em cada sete já abortou

Uma em cada sete já abortou
A primeira pesquisa nacional sobre interrupção da gravidez mostra que 15% das brasileiras entre 18 e 39 anos já fizeram aborto. São mais de 5 milhões
Isabel Clemente e Naiara Lemos
Uma em cada sete mulheres brasileiras entre 18 e 39 anos já fez aborto. Isso significa um grupo de cerca de 5,3 milhões de brasileiras, ou 15% da população no auge da idade reprodutiva. Quase a metade delas é casada ou vive com um companheiro, é católica ou evangélica, tem filhos. Esses números resultaram da primeira pesquisa nacional domiciliar sobre o aborto, cujos detalhes ÉPOCA publica com exclusividade. A outra metade de mulheres que abortaram segue um padrão igualmente comum. Entre elas, há ricas e pobres, casadas e solteiras, religiosas e agnósticas, com e sem filhos. Os pesquisadores descobriram também que, no Nordeste, o porcentual de mulheres que relataram já ter passado por isso é mais do que o dobro do encontrado no Sul. “A mulher que aborta não tem um perfil específico. Pode ser qualquer uma, de qualquer classe social”, diz o pesquisador Marcelo Medeiros, do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e coautor da pesquisa.
A Pesquisa Nacional do Aborto foi feita em janeiro deste ano pelo Ibope e elaborada pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, a Anis (que defende a legalização do aborto), em parceria com a UnB. A pergunta respondida foi “Você já fez aborto?”. Como aborto é crime no Brasil, alguns cuidados foram tomados para garantir sigilo às entrevistadas. As respostas, confidenciais, eram depositadas numa urna e questionários com dados sociais e demográficos preenchidos por entrevistadoras mulheres.
Foi com a garantia do anonimato que as mulheres confessaram o que ninguém até agora tinha conseguido medir com tamanha precisão. A sondagem envolveu 2.002 mulheres e descobriu que mais da metade das que abortaram (55%) ficaram internadas em decorrência de complicações. Isso sugere aos pesquisadores um problema de saude pública, uma vez que a internação supõe complicações médicas. A pesquisa é parte de uma extensa investigação sobre políticas de saúde reprodutiva no Brasil. Seus resultados são conservadores na medida em que avaliam o contingente de mulheres que já abortaram, não o número de abortos realizados no país (é possível que uma mesma mulher faça mais de um aborto). A investigação poderá ajudar a definir políticas públicas não só para reduzir a prática, mas para impedir que as mulheres sofram com suas sequelas.
A investigação trouxe informações sobre os métodos usados para o aborto. Mais da metade das mulheres conta ter recorrido a remédios. Como só existe no Brasil um medicamento registrado com essa finalidade, cujo uso está restrito a hospitais, a procura por abortivos é um dos pilares do silencioso mercado de medicamentos contrabandeados. O remédio abortivo mais comum tem como princípio ativo a substância misoprostol, mais conhecido por Cytotec. Seu registro foi suspenso no Brasil em 2005, a pedido do laboratório, informa a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Desde então, qualquer amostra de Cytotec encontrada no país é contrabando. Das 63 blitze realizadas pela Anvisa no ano passado, sete localizaram caixas de Cytotec. Vender medicamento sem registro no Brasil é infração gravíssima e crime hediondo, segundo a Anvisa.

Conseguiu depois de três tentativas
“Diante da gravidez, fui a parte fria. Ele ficou mais desesperado, andava de um lado para o outro, chorando. Na minha cabeça, só passava o meu pai e como resolver, se eu ia ter o filho ou não. No mesmo dia, decidi abortar. Comprei quatro pílulas de Cytotec. Tomei duas e apliquei duas no colo do útero. Sangrei, fui ao hospital e o feto continuava lá. Uma semana depois, tentamos de novo e nada. No final do mês, íamos viajar para o exterior e pensamos em usar os US$ 900 que tínhamos para abortar lá. Mas, antes, fizemos uma terceira tentativa com Cytotec, e eu abortei. Às vezes me dá uma sensação ruim, mas eu tento esquecer”
(Mariana, nome fictício, 19 anos, estudante)
Em um trabalho paralelo, a antropóloga Débora Diniz, coautora da Pesquisa Nacional de Aborto, teve acesso a investigações do Ministério Público do Distrito Federal sobre o mercado negro de medicamentos. Ela diz que os abortivos circulam nas mãos de fornecedores especializados em medicamentos para o corpo. s “São vendedores de anabolizantes, pílulas para emagrecer ou voltadas para disfunção erétil”, diz ela. “O traficante não é um sujeito perigoso. Ele faz parte do universo da mulher.” Se quase metade das mulheres usou misoprostol, como sugere a pesquisa, como fez a outra metade que abortou? “Minha suspeita é que o mercado de clínicas particulares é gigantesco”, afirma Débora. Essa desconfiança se sustenta por um número captado na pesquisa: 37% das mulheres abortaram sem tomar remédio e sem ficar internadas. Teriam tido acesso à supervisão médica?
A pesquisa rompe alguns mitos sobre o tema, na avaliação dos autores. Primeiro, que a prática seria mais comum entre as mulheres pobres. Os números mostram que o aborto se distribui de forma equilibrada em todas as classes sociais. O segundo mito, reforçado por movimentos religiosos, é que o aborto só seria feito por mulheres que não estão integradas a uma família. Também isso se mostrou falso. “Essa mulher sabe o que é uma família e frequenta igrejas e templos”, diz Débora.
O Código Penal brasileiro admite o aborto em apenas dois casos: estupro e risco de morte da mãe. Na semana passada, a Comissão de Seguridade Social da Câmara aprovou um projeto conhecido como “estatuto do nascituro”. Se virar lei como está, esse projeto pode tornar mais difícil o aborto nas circunstâncias permitidas por lei, porque protege legalmente o embrião mesmo in vitro, antes da transferência para o útero materno. Determina ainda que o Estado arque com os custos de vida da criança fruto de um estupro, se a mulher não tiver condições de mantê-la, até que o pai seja responsabilizado pela pensão ou ainda até que essa criança seja adotada. Relatora do projeto de lei, a deputada Solange Almeida (PMDB-RJ) afirma que a mulher estuprada tem direito a uma indenização porque é vítima de violência, e segurança é obrigação do Estado. “É preciso tratar o diferente com políticas diferentes”, diz Solange.
Seu projeto, porém, é criticado pelos defensores da descriminalização do aborto. Nas palavras do deputado federal Darcísio Perondi (PMDB-RS), ele “viola a dignidade das mulheres porque as transforma em simples meio para garantir direitos de um terceiro em potencial”. Para a deputada federal Rita Camata (PSDB-ES), a iniciativa cria a “bolsa-estupro”. “O bebê fruto da violência tem a ajuda do Estado, o bebê pobre, humilde, não?”, diz ela. A socióloga Elizabeth Saar, coordenadora da Área de Saúde da Secretaria de Políticas para as Mulheres, afirma que o projeto inviabiliza alguns exames pré-natais.
O aborto é um tema que mexe com convicções religiosas, filosóficas e científicas. A CNBB reafirmou, há dez dias, sua posição contrária à prática e à descriminalização do aborto, por considerá-las “contra o princípio de defesa da vida e da família”. Para 68% dos brasileiros, a lei deve continuar como está, segundo uma pesquisa de 2008 do instituto Datafolha. Apenas 11% defendem a descriminalização. Mas há uma realidade concreta: mais de 5 milhões de brasileiras já abortaram. O que fazer nesses casos? “É inviável continuar tratando todas elas como criminosas”, diz Marcelo Medeiros, da UnB. “Há um evidente problema de saúde pública em larga escala.”
Até hoje, os debates sobre o aborto eram pautados mais por convicções pessoais que por estatísticas confiáveis. Agora, legisladores e autoridades terão à mão informações sólidas sobre o universo do aborto, que afeta milhões de brasileiras e suas famílias. “Precisamos acolher essas mulheres na rede pública de saúde”, diz o médico Adson França, assessor especial do Ministério da Saúde.
A mãe era contra, a avó ajudou
“Eu não ficava menstruada. Não tinha enjoo, não tinha nada, só um sono absurdo. Fiz o exame de urina e deu positivo. Aí, o mundo acabou, né? Eu não fazia faculdade, tinha um emprego que detestava, morava com a minha avó e nem gostava do cara. Era um amigo, uma aventura. Pensava: ‘Meu! O que eu vou fazer agora? Como vou contar para as pessoas?’. Minha mãe quis que eu desse o filho para ela criar. Minha avó falou: ‘De jeito nenhum ter filho com 22 anos! Você vai estragar a sua vida!’. Ela me ajudou a procurar a clínica e pagou tudo. Aquele aborto de 1986 nunca me abandonou”
(Teresa, nome fictício, 46 anos, professora)

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