sábado, maio 22, 2010

O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

IX
Sou guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso  com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E Comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado no realidade
Sei a verdade e sou feliz.

X

Olá, guardador de rebanhos,
Ai à beira da  estrada,
Que te diz o vento que passa? 

Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois,
E a ti o que te diz? 

Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram. 

Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.


O Guardador de Rebanhos é um poema constituído por 49 textos escritos pelo heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro em 1914. Fernando Pessoa atribuiu sua gêneses a uma única noite de insônia de Caeiro. Foram publicados em 1925 nas 4ª e 5ª edições da revista Athena, com exceção do 8º poema do conjunto que só viria a ser publicado em 1931, na revista Presença. A obra contém poemas "em que a personagem surge sob iluminações imprevistas, revelando aspectos que contradizem o seu ideal de Si-Mesmo e lhe conferem verossimilhança ficcional". Os poemas mostram a forma simples e natural de sentir e dizer de seu autor, voltado para a natureza e as coisas puras. O Guardador de Rebanhos nos transmite ou propõe uma forte cosmovisão ao querer reintroduzir aparentemente um mundo pagão no século vinte de um ocidente cristianizado, mas também é certo que não possui uma ordem ou hierarquia de valores como é apanágio do poema épico. Pelo contrário, a sua forma modular permite que o poema se alongue com repetições de motivos que passam de texto para texto não resolvidos ou por resolver, numa recombinação sucessiva onde emerge uma insuspeita temporalidade. Assim, a natureza aleatória das séries (outra designação para o poema serial) sugere que estas são anárquicas, não porque acabem num tumulto de sentidos incompreensíveis, mas porque se recusam a impor uma ordem externa nos assuntos que tratam ou desenvolvem.
GRAVURA:Gauguin, Swineherd, Brittany, 1888

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Skoob

BBC Brasil Atualidades

Visitantes

free counters