domingo, setembro 26, 2010

Famílias afegãs vestem filhas como meninos para evitar vergonha

Famílias afegãs vestem filhas como meninos para evitar vergonha
Jenny Nordberg - Em Cabul (Afeganistão) – The New York Times
Mehran Rafaat (à esq) ao lado de suas irmãs Benafsha e Behishta na frente da casa da família em Qala-e-Naw
Mehran Rafaat é como muitas meninas da cidade. Ela gosta de ser o centro das atenções. Muitas vezes se frustra quando as coisas não saem do jeito dela. Como suas três irmãs mais velhas, fica ansiosa em descobrir o mundo do lado de fora do apartamento da família em seu bairro de classe média em Cabul.
Contudo, quando sua mãe, a parlamentar Azita Rafaat, veste as crianças para a escola de manhã, há uma diferença importante. As irmãs de Mehran colocam vestidos pretos e lenços no cabelo apertados sobre seus rabos-de-cavalo. Já Mehran coloca calças verdes, camiseta branca e uma gravata, e sua mãe afaga com a mão seu cabelo curto e preto. Depois disso, a filha sai pela porta -como um menino.
Não há estatísticas sobre quantas meninas se passam por meninos. Mas quando perguntadas, várias gerações de afegãos contam histórias de uma parenta, amiga, vizinha ou colega de trabalho que cresceu vestida de menino. Para aqueles que sabem, essas crianças muitas vezes não são chamadas nem de filha nem de filho nas conversas, mas de “bacha posh”, que literalmente significa “vestida como menino”, em dari.
Por meio de dezenas de entrevistas conduzidas em vários meses, nas quais as pessoas preferiram permanecer anônimas ou usar somente seus primeiros nomes com medo de serem identificadas, foi possível acompanhar a prática que permaneceu quase ignorada pelos estrangeiros. Ainda assim, é comum em todos os estratos afegãos, comum às diferentes classes, níveis de educação, etnia ou geografia e perdura apesar de muitas guerras e diferentes governos.
As famílias têm muitas razões para fingir que suas meninas são meninos, inclusive necessidade econômica, pressão social para terem filhos e, em alguns casos, uma superstição que, ao fazerem isso, promoverão o nascimento de um verdadeiro menino. Na falta de um garoto, os pais decidem criar um, cortando o cabelo de uma filha e vestindo-a com roupas típicas de homens. Não há restrições religiosas ou legais específicas para a prática. Na maior parte dos casos, a volta ao feminino acontece quando a criança entra na puberdade. Os pais quase sempre tomam essa decisão.
Em uma terra onde os meninos são mais valorizados, já que somente eles podem herdar os bens dos pais e transmitir seu nome, as famílias sem filhos homens são objetos de pena e desdém. Até mesmo um filho inventado aumenta o status da família, ao menos por alguns anos. Um “bacha posh” também pode receber educação com mais facilidade, trabalhar fora de casa e até escoltar suas irmãs em público, liberdades que não são possíveis para as meninas em uma sociedade que segrega estritamente os homens e as mulheres.
Para alguns, a mudança pode ser desorientadora ou liberadora, deixando as mulheres em um limbo entre os dois sexos.
“Sei que é muito difícil para vocês entenderem porque uma mãe faz uma coisa dessas coisas com sua filha mais jovem, mas eu preciso dizer que algumas coisas acontecem no Afeganistão que realmente não são imagináveis para vocês do Ocidente”, disse Rafaat em inglês imperfeito, em uma de muitas entrevistas durante semanas.
Pressão para ter um menino
No dia fatídico em que ela se tornou mãe pela primeira vez -7 de fevereiro de 1999 - Rafaat sabia que tinha fracassado, mas estava exausta demais para falar, tremendo de frio no chão da pequena casa da família na província de Baghis.
Ela tinha acabado de dar à luz -2 vezes- às irmãs mais velhas de Mehran, Benafsha e Beheshta. A primeira gêmea nasceu depois de quase 72 horas de trabalho de parto, prematura de um mês. A menina pesava apenas 1,2 kg e não respirou a princípio. A irmã nasceu dez minutos depois e também estava inconsciente.
Quando a sogra começou a chorar, Rafaat sabia que não era de medo das netas não sobreviverem. A idosa estava desapontada.
“Por que estamos recebendo mais meninas na família?”, gritava, de acordo com Rafaat.
Rafaat foi criada em Cabul, onde era ótima aluna, falava seis línguas e nutria sonhos de se tornar médica. Contudo, o pai forçou-a a se tornar a segunda esposa de seu primeiro primo, ela teve que se submeter e se tornar a esposa de um agricultor analfabeto em uma casa rural sem água corrente ou eletricidade, onde a sogra governava e onde ela deveria cuidar das vacas, ovelhas e galinhas. Ela não se saiu bem.
Os conflitos com a sogra começaram imediatamente, enquanto a nova senhora Rafaat insistia em maior higiene e mais contato com os homens na casa. Ela também pedia que a sogra parasse de bater na primeira mulher do marido com sua bengala. Quando Rafaat finalmente quebrou a bengala em protesto, a senhora exigiu que o filho, Ezatullah, controlasse sua nova mulher.
Ele o fazia com um bastão de madeira ou um arame.
“No corpo, no rosto”, lembra-se. “Eu tentava detê-lo. Eu pedia que ele parasse. Algumas vezes nem pedia”.
Logo, ela ficou grávida. A família tratou-a ligeiramente melhor quando ela ficou barriguda.
“Eles esperavam um menino desta vez”, explicou.
A primeira mulher de Ezatullah Rafaat tinha dado à luz a duas filhas, uma das quais morrera ainda criança, e ela não podia mais conceber. Azita Rafaat pariu duas meninas, o dobro do desapontamento.
Azita Rafaat enfrentou pressão constante para tentar novamente, o que ela fez, em duas outras gestações, quando ela teve mais duas filhas -Mehrangis, hoje com 9, e finalmente Mehran, de 6.
Quando perguntamos se tinha pensado em deixar o marido, ela reagiu com completa surpresa.
“Eu pensava em morrer”, disse ela. “Mas nunca pensei em divórcio. Se eu tivesse me separado do meu marido, teria pedido meus filhos, e eles não teriam direitos. Não sou de desistir.”
Hoje, ela está em uma posição de poder, ao menos no papel. É uma das 68 mulheres no parlamento de 249 membros da Afeganistão, representando a província de Badghis. O marido dela está desempregado e passa a maior parte de seu tempo em casa.
“Ele é meu marido do lar”, brincou.
Ela o persuadiu a mudar-se para longe da sogra e ofereceu-se para contribuir para a renda da família, estabelecendo a base para sua vida política. Três anos depois de casada, após a queda do Taleban em 2002, ela começou a se voluntariar para trabalhar com saúde para várias organizações não-governamentais. Hoje ela faz US$ 2.000 (em torno de R$ 3.500) por mês como membro do Parlamento.
Como política, ela trabalha para melhorar os direitos da mulher e o Estado do direito. Ela concorreu à reeleição no sábado e, com base nas contagens preliminares, está otimista que vai conquistar o segundo mandato. Mas ela só pode concorrer com a permissão explícita do marido, e da segunda vez, ele não foi facilmente persuadido.
Ele queria tentar ter um filho novamente. Seria difícil combinar a gravidez e outro filho com o trabalho, disse ela -e ela sabia que poderia ter outra menina de qualquer forma.
Mas a pressão para ter um filho se estendia para além do marido. Era o único assunto que envolvia seus eleitores quando ela visitava suas casas, disse ela.
“Quando você não tem um filho no Afeganistão, é como se tivesse um buraco enorme em sua vida. Como se você tivesse perdido a coisa mais importante da vida. Todo mundo sente pena de você”, explica.
Como política, também se espera dela que ela seja uma boa esposa e mãe; em vez disso, ela parecia uma mulher fracassada para seus eleitores. As fofocas se espalharam para sua província, e seu marido também foi questionado e passou vergonha, disse ela.
Em uma tentativa de preservar seu emprego e aplacar seu marido, assim como evitar a ameaça de ele tomar uma terceira mulher, ela propôs que eles fizessem a filha caçula parecer um menino.
“As pessoas entravam na nossa casa sentindo pena de nós porque não tínhamos um filho”, lembra-se. “E as meninas? Não podíamos deixar que saíssem de casa. E se nós transformássemos Mehran em menino, teríamos muito mais liberdade na sociedade para ela. E poderíamos enviá-la para fora para fazer compras e ajudar o pai.”
Nenhuma hesitação
Juntos, os pais conversaram com a filha mais jovem. Eles fizeram uma proposta sedutora: “Você quer ficar parecendo um menino, se vestir como um menino e fazer coisas mais divertidas como os meninos, como andar de bicicleta, jogar futebol e críquete? E você gostaria de ser como seu pai?”
Mehran não hesitou em dizer sim.
Naquela tarde, o pai levou a filha para o barbeiro, onde seu cabelo foi cortado curto. Depois, foram ao bazar, onde ela ganhou roupas novas. Seu primeiro conjunto parecia uma roupa de caubói, disse Rafaat, referindo-se a um par de jeans e uma camisa vermelha com “superstar” escrito nas costas.
Ela até recebeu um nome novo –chamada originalmente de Manoush, seu nome mudou para Mehran, mais masculino.
A volta de Mehran à escola -com calças e sem as marias-chiquinhas- aconteceu sem grande reação de seus colegas. Ela ainda tirava uma soneca de tarde com as meninas e mudava roupa em uma sala separada dos meninos. Alguns de seus colegas ainda a chamavam de Manoush, enquanto outras a chamavam de Mehran. Mas ela sempre se apresentava como um menino.
Khatera Momand, diretora da escola, com menos de um ano no cargo, disse que sempre presumira que Mehran era um menino, até ajudá-la a colocar os pijamas certa tarde.
“Foi uma surpresa para mim”, disse ela.
Porém, depois que Rafaat ligou para a escola explicou que a família tinha apenas duas meninas , Momand compreendeu perfeitamente. Ela tinha tido uma amiga na academia de professores que se vestia como menino.
Hoje, os parentes da família e colegas sabem o verdadeiro sexo de Mehran, mas a aparência de um filho diante dos convidados e desconhecidos é suficiente para manter a família funcionando, disse Rafaat. Ao menos por enquanto.
O pai de Mehran disse que se sentia mais próximo dela do que de suas outras filhas e pensava nela como um filho.
“Estou muito feliz”, disse ele. “Quando as pessoas agora me perguntam, digo que sim, e elas vêem que eu tenho um filho. Então elas ficam quietas, e eu fico quieto.”
Tradução: Deborah Weinberg

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