domingo, setembro 26, 2010

Um escritor é uma antena da sociedade

Um escritor é uma antena da sociedade
Jacinto Lucas Pires regressa ao teatro para conjugar família, política e religião. «Sagrada Família», estreada na Culturgeste, em Lisboa, foi o pretexto para uma conversa que se cruza com ideais de bem comum.
A peça «Sagrada Família» pretende usar a política para chegar à religião ou parte da religião para chegar à política? Não pensei em usar uma para chegar à outra, mas desde logo pensei que eram duas questões que queria colocar na peça. Queria encontrar uma forma dramática para chegar à pergunta de ser ou não possível mudar o mundo. Será que ainda é possível? Faz sentido ainda querermos mudar o mundo? Se sim, em que termos e porque é que não estamos a falar disso?
E encontrou uma resposta? Acho que o teatro não serve tanto para dar respostas, mas antes para colocar perguntas difíceis. Não gosto da ficção que quer impor mensagens ao espectador, onde a arte é apenas um meio para ilustrar as «verdades absolutas» que os autores querem vender a uma sociedade ou a um público. Considero mais interessante usar o teatro, a escrita e a literatura em geral como provocação, como matéria de pensamento, para, em conjunto, pensarmos ao mesmo tempo. Acho que é disso que a sociedade padece atualmente. Está cada um no seu iphone ou no seu computador portátil e há cada vez menos esse milagre de estarmos juntos numa sala, com as mesmas questões, alguns a discordar mas também a chegar a soluções de união e consenso. Isto está relacionado com a religião e com a política também. No fundo têm momentos de comunhão de tentar em conjunto pensar e solucionar o mundo ou, pelo menos, transformá-lo para melhor.
Religião e política têm uma relação próxima? Não diria tanto, mas se em vez de religião dissermos espiritualidade ou moral, ou até ética, acho que se sim.
Porque querem ambas passar uma mensagem? Não, porque ambas têm uma relação com a vida em comum. São campos diferentes, mas há vários pontos em que as duas se tocam.
Não querendo usar a escrita e, neste caso, o teatro, como veículo para uma mensagem, esta peça questiona a moral… Espero que questione as pessoas. Espero até que o público possa sair do teatro um pouco abalado, ao ponto de questionar sobre a sua vida e sobre o que fazer. Mas não quis passar uma moral no fim da peça. Inclusivamente, na fase dos ensaios, algumas pessoas faziam uma leitura cínica do final, outras concentravam-se na proposta inicial e acreditavam que seria possível (mudar o mundo, ndr), as vias é que teriam sido erradas. A leitura depende de cada um, até do estado de espírito em que se vê a peça.  Não quero fechar a peça numa moral, capaz de identificar os bons ou os maus. Não tenho essa ilusão nem essa resposta, mas quero fazer e acho que é preciso fazer a pergunta com honestidade.
É preciso ser-se criança para perceber os problemas do mundo? Não sei bem como me apareceu essa ideia do filho – que aliás é também um tema religioso, o filho que aparece para revolucionar a lei antiga e a velha ordem. Eu como pai sinto isso em relação aos meus filhos, uma inocência que verbaliza coisas que damos por adquiridas e por isso silenciamos, ou queremos esconder. As crianças, felizmente, ainda nascem a ver as coisas tal como elas são e verbalizam-nas. Porque é que isto está assim? Porque é que o mundo está todo partido? Como é que é possível olhar para as pessoas que são diferentes e dizer que elas não merecem determinada coisa? Esquecemos que são perguntas elementares que deveriam estar sempre na nossa cabeça.
Mas posta a questão por parte dos filhos, há depois a compreensão por parte dos pais? Falta muito para darmos respostas a estas questões. E parece-me especialmente dramático que, num tempo em que conseguimos inventar coisas magníficas que fascinam os nossos filhos, num tempo em que temos a possibilidade de criar coisas incríveis quando se juntam empresas, dinheiro, universidades e talento, não consigamos resolver problemas essenciais.
Há um filósofo que diz que a política começou na antiga Grécia, quando os marginalizados falaram em público e, não só falaram, mas fizeram-no em nome do todo. Eles que eram desempregados e sem abrigo, quando tomaram a palavra não o fizeram para reivindicar direitos seus, mas direitos de todos.
Acho que falta isso. Pensarmos não apenas no nosso quintal, na nossa cidade ou país, mas em nome de todos. Falta abertura de espírito e de vistas.
Podemos ver o Jacinto Lucas Pires no lugar da criança da «Sagrada Família»? Espero bem que não…. (risos)
A criança que, na sua ingenuidade, percebe vários problemas no mundo, nunca pede ao pai que crie uma religião ou uma micro-empresa, mas é sensível aos problemas... É a antena. É verdade que os escritores têm de ser um pouco antenas da sociedade. Não têm de dar as respostas, como talvez alguns consideram que as podem dar. Eu acho que o escritor deve ser antena. Deve captar os desequilíbrios e encontrar formas de o evidenciar.
O filho verbaliza o que não entende. «Seis tipos a cuspir em cima de alguém é uma agressão? É que eu fiquei na dúvida e isso tramou-se… Como é que há pessoas que vivem debaixo de uma ponte e nós temos uma casa? Como é que algumas pessoas têm mais do que uma casa com muitos comandos à distância? Que mundo é este?»
Não acho que a solução seja ficarmos deprimidos, mas precisamente o contrário. Sermos positivos e transformadores.
Uma das interpretações possíveis da peça «Sagrada Família» é a inevitabilidade de não se sobreviver aos problemas do mundo. Inventar uma religião pode ser a solução? Francamente acho que não, mas agora sou espectador da minha peça. A minha opinião, neste momento, vale tanto como a de qualquer outro espectador.
Acho que inventar uma religião não é a solução, mas a verdade é que o mundo parece sabotado e armadilhado. Basta olhar para os partidos.
Imaginando que alguém sente um talento especial ou vocação para ajudar o país, possivelmente inscreve-se num partido qualquer que existe em Portugal mas, passado pouco tempo, sai desiludido. Parecem-me máquinas de pequeno poder para ver quem vai ser o terceiro da lista ou o presidente da Junta, em vez de se pensar como se pode mudar, ou contribuir para o bem comum.  O mundo está realmente difícil. Acho que precisamos usar formas ousadas e imaginativas - não que eu saiba quais são, mas acredito que podemos pensá-las em conjunto - para sabotar a sabotagem e subverter esta armadilha.
Se queremos transformar o mundo temos de ultrapassar isto de alguma maneira.
Precisamos de pessoas mobilizadoras? Com oratória, mesmo sendo normais? O Pedro (protagonista da peça) no final admite que é apenas um tipo normal, mas uma normalidade que entusiasmava as pessoas… é isso que é preciso? Oratória não, mas uma palavra no momento certo tem um poder transformador. Precisamos de pessoas com boa fé, interessadas no bem comum, não no seu interesse próprio, do seu clã ou do seu partido, e mais nas soluções dos problemas.
Consegue resistir a uma boa ideia para escrever um livro? Primeiro há o drama de não sabermos se é uma boa ideia. Mas a questão é essa mesma – resistir-lhe. Resisto durante um tempo. Se ela desaparecer, então era uma má ideia. Mas pode voltar, até por outras vias, transformada.
Tenho aprendido, à minha custa, a não começar logo a atacar uma ideia que surge. Há qualquer coisa que vai crescendo, num vai e vem. Quando estamos empenhados em começar, é fascinante. Não sabemos bem o que é, há uma aproximação ao mistério. O vocabulário para o qualificar é quase religioso. Procurar encontrar a revelação daquele nó que nós não controlamos. Dar clareza ao mistério.
Quando escreve, aborda as personagens por antítese ou aproximação a si? Instintivamente começo longe de mim, na aparência, na profissão, na vida privada. Mas é verdade que a escrita vai ganhando algumas características minhas, porque a pessoa escreve a partir do que sabe. É um pouco incontrolável.
Os seus livros são marcadamente urbanos. Quando fala na intenção de abordar os problemas do mundo, é essa realidade que quer refletir? Sempre vivi em cidades e gosto da vida urbana. Gosto do campo como um parêntesis.
A inspiração é urbana? As histórias que me aparecem são sempre em cidades, de pessoas que vivem em cidades. Mas no fundo, o interior das pessoas, a cabeça e o seu coração, que se mistura nas personagens e nas pessoas de carne e osso, é igual. Pode haver questões de ritmo, de linguagem, de contexto, mas o fundo é sempre igual.

A escrita é um processo isolado ou decorre no barulho? Já não consigo ser firme nessa questão, mas prefiro estar em silêncio. Com filhos é mais difícil, mas gosto de estar no silêncio, sem ninguém.
E para escrever a «Sagrada Família» qual foi a boa ideia a que não conseguiu resistir? A própria ideia de família, que para mim não é muito normal. Não costumo escrever sobre famílias. Juntar família, religião e política pareceu-me uma boa ideia.
E porquê esta incursão pelo universo familiar? Inicialmente foi instintivo, mas depois fui percebendo porquê. A própria ideia de sociedade e comunidade está ligada a temas de religião e política. E eu, encontrava na  família, uma transposição possível para palco do que seria mesmo uma sociedade, uma cidade. Isso permitia-me criar um lugar de conjunto, onde as pessoas se reuniam. Permitia também, ter diferentes pontos de vistas, diferentes percursos, alguns até antagónicos, dando visibilidade a um contraste mais rapidamente.
E coloca em relação duas famílias que são muito diferentes... Exatamente. E quando percebi isso fiquei especialmente satisfeito porque me permitia mostrar rapidamente um contraste. No final, numa família acontece alguma coisa, e na outra há um não acontecimento. Há uma negação, que faz ecoar o acontecimento principal em termos mais poderosos.
Isto porque nós reagimos de forma diferente ao mesmo acontecimento. Alguns atiram-se da janela, outros fingem que não aconteceu, outras mudam para melhor.

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