domingo, setembro 26, 2010

Na Glória

Na Glória
Fernanda Torres – Veja Rio
A atual temporada teatral do Rio de Janeiro empolga pela qualidade. Para quem tem preconceito, recomendo Pterodátilos, com o Marco Nanini e a Mariana Lima. Depois, passe no Maison de France e vá ver minha adorada Julia Lemmertz em Deus da Carnificina, seguida de Claudia Jimenez em parceria com Miguel Falabella em Mais Respeito que Eu Sou Tua Mãe!. Se descobrir que teatro é bom, arrisque um pulo com as crianças no Teatro Oi para rever Os Saltimbancos e não perca a versão de A Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen, com músicas de Dorival Caymmi e com o grupo PeQuod de marionetes no CCBB.
Uma boa peça só acontece ali, naquela cidade, naquela sala e naquele exato momento. Não é como um filme, que se mostra para qualquer um, ou um programa de TV para milhões. Quem viu o Macunaíma do Antunes Filho, ou O Mistério de Irma Vap, com o mesmo Nanini e Ney Latorraca, ou o Asdrúbal Trouxe o Trombone, ou o Rei da Vela de José Celso, ou o Seria Cômico Se Não Fosse Sério com meus progenitores, participou de uma experiência que existe, hoje, na história e na cabeça dos que tiveram a sorte de estar lá. É muito especial.
O Rio de Janeiro tem um grande problema para quem vive ou gosta da profissão: a falta de boas casas de espetáculo. Muitas fecharam, outras viraram escombros. A falta de segurança das ruas fomentou os teatros de shopping. Eles são mais do que bem-vindos, pois serviram de contraponto às inúmeras salas extintas. O problema é que a maioria foi adaptada de cinemas, ou lojas, e é carente de urdimento, fosso, coxias e inclinação adequada da plateia. Digo isso, mas deixo claro que louvo a iniciativa de pessoas como a economista Ecila Mutzenbecher. Empreendedora, Ecila construiu e renovou diversos palcos no Rio e em São Paulo.
Estou preparando uma adaptação do romance Na Praia, de Ian MacEwan, comigo e com Fernando Eiras, direção do Felipe Hirsch. Começamos desde já o xadrez para encontrar um local adequado no ano que vem que tenha a delicadeza que o projeto merece. Nessa procura, nós nos lembramos do Teatro Glória. A perspectiva da reforma do hotel nos animou pela possibilidade de o público poder usufruir o seu charme, condução na porta, manobrista, tamanho exato, qualidade da sala e localização.
Eike Batista não costuma investir em teatro e tem todo o direito de ser mecenas dos seus interesses. Sabendo disso, contatamos seu escritório apenas para saber informações a respeito da reabertura do espaço. Para nossa surpresa, a resposta foi a de que o Teatro Glória fora demolido. Segundo o assessor, essa foi a primeira medida tomada na reforma do prédio. Por questões de segurança, vários quartos tiveram de ser adaptados, e o teatro, com um palco já pequeno no original, teria sua metragem reduzida e não ofereceria grandes atrativos.
Confesso que a notícia me calou fundo. Lamento o fim da última casa de espetáculos naquela região, depois do fechamento do Teatro Manchete, e me deprimo ao pensar que o destino do Glória foi o mesmo do Teatro Copacabana. Na reforma do Copacabana Palace, o local serviu de depósito de entulho e, depois, nunca mais abriu suas portas. Não sei se farão uma boate, ou um estacionamento, talvez um spa ou uma academia de ginástica, não sei. Segundo a assessoria, o hotel não terá auditório.
Adriana Rattes e governador Sérgio Cabral, será que não existe uma maneira de proteger esses espaços tradicionais da cidade? O Rio perde imensamente sem eles. De certa forma, as paredes de um teatro são as testemunhas materiais de uma profissão que não deixa vestígios. Na minha infância, meus pais ocuparam o Glória por um longo período. Vi peças inesquecíveis deles ali, como O Amante de Madame Vidal e O Interrogatório. Respeito a decisão do projeto e dou boas-vindas às iniciativas do Eike Batista de investir no Rio de Janeiro. Mas, para mim, que fui criada naquelas coxias, a notícia de que o Teatro Glória veio abaixo bateu como um funeral.
Fernanda Torres e-mail: fernanda.torres.vejario@gmail.com

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