domingo, setembro 26, 2010

O maior escândalo da paróquia

O maior escândalo da paróquia
Alessandra Medina – VEJA Rio
Monsenhor Abílio, ex-administrador da Mitra e pivô do incidente no aeroporto: críticas ao antecessor no cargo - Foto:  Uanderson Fernandes/Ag. O Dia
Estudo da FGV aponta falhas administrativas e aumenta desgaste da Cúria do Rio, abalada pelo episódio do ecônomo que tentou sair do país com 53 000 euros escondidos na bagagem e na cueca
Uma figura da Igreja Católica até então despercebida ganhou destaque no noticiário de uns tempos para cá. O ecônomo, o tal personagem em questão, tem a incumbência de administrar as finanças da Mitra, como é designada a figura jurídica da Arquidiocese. Até duas semanas atrás, o cargo esteve ocupado por monsenhor Abílio Ferreira da Nova. Flagrado tentando embarcar para Portugal com 53 000 euros espalhados pela bagagem, meias e cueca, o pároco, que estava demissionário desde maio, acabou sendo afastado. Foi substituído pelo monsenhor Helio Pacheco Filho, filho de um general e ex-reitor do Seminário São José. Seu principal desafio na função é reorganizar toda a parte administrativa. Não será uma tarefa simples. VEJA RIO teve acesso exclusivo a um estudo da Fundação Getulio Vargas encomendado pela própria instituição religiosa em 2008. Após uma análise detalhada da estrutura financeira da Cúria, a FGV chegou a conclusões surpreendentes, que apontam para a falta de transparência “nos processos geradores de recursos financeiros” e nos “critérios de cobrança de luvas e aluguéis”. Entre outros alertas, enfatiza a inexistência de comunicação entre os departamentos, e que nada é documentado nem fiscalizado. Resumo da missa: uma bagunça.
Com mais de 300 páginas, o relatório esmiúça diversas vertentes de gerenciamento: a patrimonial, a financeira, a contábil e a de recursos humanos. Analisada meramente como uma empresa, a Arquidiocese do Rio exibe números grandiosos. Formada por 251 paróquias, ela possui centenas de imóveis. Todo esse patrimônio, no entanto, não lhe tem proporcionado a devida rentabilidade. De acordo com a radiografia feita pela FGV, a receita está na faixa dos 2 milhões de reais por mês, provenientes de aluguéis, doações e das esmolas dos fiéis (veja o quadro na pág. 19). Parece muito, mas em vista do capital imobilizado a soma chega a ser irrisória. Para piorar, a despesa supera o valor arrecadado, o que causa um déficit de 100 000 reais por mês. O item que mais onera o bolso da Igreja é a sua folha de pagamento, na casa de 400 000 reais. Ela emprega cerca de 1 700 funcionários que trabalham sem controle de frequência ou punição por atrasos e faltas. Concluído em novembro de 2008, o estudo sugeriu o corte de pessoal como uma das medidas necessárias para estancar a sangria financeira. Até hoje, a orientação foi ignorada.
Embora tenha uma linguagem mais afeita ao mundo dos negócios, o relatório é de leitura simples — e causa espanto. Um de seus capítulos mais reveladores aborda a “administração patrimonial e de suprimentos”. A FGV observou a inexistência de regras para monitorar a administração dos imóveis alugados. Em alguns casos, não há sequer documentos de locação. Em outros, os valores são estipulados aleatoriamente, sem levar em conta critérios terrenos como localização, oferta e procura. Ou seja: é absolutamente frouxo o controle sobre o fluxo de verbas de suas transações comerciais. De acordo com o levantamento, a Cúria tem hoje 450 contratos de locação em vigência, que lhe rendem mensalmente a quantia de 850 000 reais. Num cálculo rápido, cada uma dessas propriedades fornece, em média, 1 888 reais. Levando-se em consideração o aquecimento do mercado imobiliário carioca, até parece caridade. Um desses imóveis é o prédio de 22 andares situado na esquina da Rua São José com a Avenida Rio Branco, um ponto valorizadíssimo do Centro da cidade. Segundo corretores consultados pela reportagem, só o aluguel dessa propriedade deveria render ao locador, numa estimativa conservadora, 1 milhão de reais, mais do que toda a soma arrecadada.
Acima, fragmentos do relatório feito pela
Fundação Getulio Vargas: constatação de falta
de transparência em transações realizadas pela Arquidiocese
Em certa medida, o relatório apenas joga mais luz sobre um problema que não surgiu da noite para o dia. Antecessor de monsenhor Abílio como gestor dos bens da Cúria, o padre Edvino Alexandre Steckel foi obrigado a deixar a função, em maio do ano passado, após ser alvo de uma série de denúncias. Com ótimo trânsito na alta sociedade carioca e amante de roupas de grifes internacionais, o pároco teve como estopim de sua saída a compra de um apartamento de 500 metros quadrados no Flamengo, pelo qual pagou 2,2 milhões de reais. Chegou a circular o boato de que o imóvel seria ocupado por dom Eusébio Scheid, arcebispo do Rio de Janeiro entre setembro de 2001 e abril de 2009, depois que saísse de sua posição. Acusado de ser perdulário, o padre Edvino (que, por sinal, foi quem encomendou a pesquisa à FGV) andava em automóvel importado e gastou mais de 50 000 reais na reforma de uma das salas na sede da Mitra. Só por um sofá de couro teria desembolsado mais de 20 000 reais. Um adendo: tanto o imóvel quanto o mobiliário de luxo ainda não foram vendidos. Numa decisão do arcebispo atual, dom Orani Tempesta, monsenhor Abílio foi reconduzido ao posto após o afastamento do padre Edvino. Assim que reassumiu a função, lamentou não saber o destino dos 7 milhões de reais que dissera ter deixado no caixa em sua primeira passagem pelo cargo.
Dom Orani Tempesta (acima), o atual arcebispo do Rio, o ecônomo anterior, Edvino Steckel (abaixo.), e o prédio do Centro alugado pela Igreja e que é alvo de polêmica: finanças questionadas

A varredura na contabilidade constatou uma absoluta falta de informações gerenciais. Princípios básicos, adotados até por pequenos negócios como padarias e açougues, são ignorados. Um exemplo é a inexistência de controle sobre os salários dos funcionários. As remunerações são estabelecidas nas igrejas pelos próprios vigários, e, na Matriz, pelo ecônomo. Muitas vezes, para nova surpresa dos especialistas que produziram o estudo, os pagamentos são feitos em dinheiro vivo. As paróquias devem repassar 30% de sua arrecadação para a Mitra. O restante é administrado internamente, com monitoramento frágil e beirando a informalidade. De acordo com o relatório, os pagamentos de remunerações extras não são documentados, e as autorizações de aumento para os funcionários são transmitidas ao departamento de recursos humanos por telefone. Inexiste também fiscalização sobre pagamentos feitos a autônomos. Entre as recomendações apresentadas pela fundação para reordenar a vida financeira da Arquidiocese do Rio estava a implantação de um sistema de informação que integrasse os dados de todas as paróquias. Por enquanto, nada foi feito. Eis mais um mistério da fé.
Procurados por VEJA RIO, o padre Edvino, monsenhor Abílio, a Fundação Getúlio Vargas e a Arquidiocese do Rio preferiram não se manifestar.

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