sábado, setembro 25, 2010
Tráfico de violência
Tráfico de violência
CACÁ DIEGUES – O Globo
Chegando de Maceió, meus pais foram morar no bairro de Botafogo, de onde, pelo resto de suas vidas, nunca mais saíram. Durante minha adolescência, moramos na Rua da Matriz, cujos limites iam da Igreja de São João Batista, na Rua Voluntários da Pátria, à subida do Morro Dona Marta, na São Clemente. Como eu estudava no Colégio Santo Inácio, nessa mesma rua, voltava a pé para casa e quase sempre acabava ganhando vaga na pelada liderada pelos meninos do morro, disputada no terreno baldio que dava então acesso à favela.
Foi ali, jogando bola com eles, que comecei a compreender a natureza das diferenças sociais, bem como as semelhanças que nos faziam iguais.
Foi ali também que experimentei um cigarro de maconha, cortesia de um menino mais velho, num tempo em que a droga ainda era inocente.
Hoje, o uso de drogas se tornou um costume universal que, embora combatido, resiste e só faz crescer. Se a droga gera algum bem-estar no indivíduo que a usa, haverá sempre quem queira experimentá-la e quem acabe por torná-la um hábito. É assim que nascem os costumes, é assim que o mundo gira. Se não fosse desse jeito, a humanidade já teria desistido de se entorpecer, desde que descobriu os efeitos do vinho. E já que haverá sempre consumidores, sempre haverá os que procuram se beneficiar do comércio gerado pelo consumo. Vamos ser simples e claros, sem superstições moralistas: o tráfico de drogas, no mundo inteiro, não vai acabar nunca mais.
As questões fundamentais sobre a droga são outras. A primeira diz respeito à saúde física e espiritual do consumidor, sua dignidade e sobrevivência, sua degradação e morte prematura.
A segunda, à segurança da sociedade, daqueles que precisam ser protegidos da violência que se instaura em torno do tráfico de drogas.
Não tenho dúvida de que essas questões só podem ser enfrentadas de vez com a legalização do uso de drogas e seu consequente controle social. Mas isso vai demorar muito a acontecer, pois terá que ser uma decisão universal, acordada pelas nações de todo o mundo. Se um país tomar a iniciativa da legalização sem esse consenso internacional, se tornará logo o maior fornecedor de drogas do planeta e um intolerável exportador de violência.
Em todas as grandes cidades do mundo existe tráfico de drogas e a violência que o acompanha, resultado da clandestinidade em que tem de ser praticado. Mas, nas metrópoles brasileiras, essa violência se agrava com a presença de armas de guerra, seu alcance e seu poder destruidor.
O Rio de Janeiro é, ao lado de Bagdá e Cabul, uma das poucas cidades do mundo onde a violência urbana é praticada com armas de guerra. Como não estamos em guerra, nem existe fábrica de armas nas favelas cariocas, de onde elas vêm e por que se faz tão pouco para evitar sua entrada aqui? As Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs criadas pelo governo do estado, não pretendem e não vão mesmo acabar com o tráfico de drogas, mas podem acabar com a violência decorrente dele. Através da ocupação permanente, elas podem evitar a tomada das favelas por traficantes que controlam socialmente a população e impõem suas próprias leis com armas de guerra. Recuperar esses territórios para seus moradores é uma produção da paz possível, a paz a que tem direito todo cidadão brasileiro, more onde morar.
Esse é o primeiro serviço a que essa população tem direito, mas não o último. Para que as UPPs tenham consequência social concreta, é preciso que o resto do estado, que nunca subiu o morro, venha em seguida.
Assistência social, saúde, educação, saneamento, e sobretudo emprego e renda (e aí a iniciativa privada se torna protagonista), são indispensáveis para a integração dessa população com o resto da sociedade. Só aí o estado terá condições de exigir o cumprimento dos deveres desses cidadãos, só aí as favelas cariocas poderão viver plenamente num estado de direito.
Esse projeto, tendo as UPPs como ponta de lança, não é fácil de se realizar e muito menos terá resultado imediato. Mas poderá se dar de modo seguro, num tempo mais ou menos longo, se observadas e cumpridas todas as etapas necessárias ao processo. Sem a presença de outros serviços do estado, além de emprego e renda para os moradores (sobretudo os jovens), a polícia sozinha jamais poderá dar conta desse recado.
Mas ter dado o primeiro passo nessa direção é a grande virtude deste governo e de sua Secretaria de Segurança.
O poder público, ao longo dos anos, já fez tanta besteira nesta área que a desconfiança natural gera em nós um certo pudor em apoiar novas propostas. Mas as UPPs são um grande acerto, aquele primeiro passo decisivo na longa caminhada para resolver uma injustiça social secular, agravada agora pelo costume das drogas. Elas precisam da compreensão de toda a sociedade para que o projeto seja bem-sucedido.
CACÁ DIEGUES é cineasta.
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