terça-feira, outubro 19, 2010

Os dois engodos do segundo turno

Os dois engodos do segundo turno
Fernando Abrucio – Revista época
E dois significados encontrados nos dicionários. O primeiro deles diz respeito a uma isca para pescar peixes – daí a palavra engodo ser usada como uma forma enganosa de atrair alguém. Esse termo também tem outro sentido: propugnar coisas que nem quem propõe acredita. Nessas duas acepções, a palavra engodo ganhou um enorme espaço no debate do segundo turno, prejudicando a qualidade da discussão política.
Cada candidato tem seu engodo preferido. O de José Serra relaciona-se com a questão do aborto. Na verdade, o que seu grupo político fez, do final do primeiro turno para cá, foi tentar mostrar que a concorrente não comungava de uma visão, digamos, cristã sobre questões mais profundas. O aborto seria o grande exemplo disso.
É bom ressaltar: a campanha de José Serra não quer discutir seriamente a questão do aborto. Só ingênuos ou seus partidários menos críticos acreditariam nisso. Trata-se de mero oportunismo eleitoral – afinal, a última pesquisa do Ibope revelou que a questão religiosa foi essencial para a realização do segundo turno. A posição de Serra não é a ultraconservadora da TFP. Basta analisar sua gestão no Ministério da Saúde. Ela foi extremamente correta, tanto ao cumprir a legislação como ao evitar um debate estéril – e histérico – sobre um assunto complexo que não pode ser tratado de forma gratuita e leviana.
A candidatura tucana, com o grande entusiasmo e mobilização de seu vice, está usando o tema do aborto apenas como um engodo. Primeiro, alastrando uma visão com a qual Serra não comunga, mas que lhe é útil na eleição. Adiciona-se a esse fato a facilidade com que a candidata Dilma Rousseff agarrou essa isca – o outro sentido do termo. Obviamente que ela foi envolvida por boatos e uma campanha sórdida contra sua imagem. Mas também é verdade que Dilma não soube definir uma posição clara sobre o assunto. Uma campanha presidencial, em particular num segundo turno, exige uma preparação para todos os assuntos polêmicos. Neste caso, Dilma não fez a lição de casa.
Aborto e privatização entraram no debate por oportunismo eleitoral. Não estão na agenda real do Brasil
A maneira como este debate apareceu favorece as acepções mais obscurantistas desta questão, como dizer que Dilma vai “matar as criancinhas”. Talvez os tucanos não tenham percebido a caixa de Pandora que abriram. Este oportunismo eleitoral pode favorecer a ascensão de uma agenda como a dos republicanos mais conservadores dos Estados Unidos. Essa não é a cara do candidato José Serra. Sua agenda ficaria mais consistente com sua história se fosse movida pelo seguinte lema: menos moralismo e mais reformas.
E, por falar em reformas, chegamos ao segundo engodo da eleição. Desta vez, o tema em questão é o “perigo das privatizações”. Voltamos à farsa do segundo turno de 2006, e que agora pode se repetir como tragédia eleitoral. Qualquer avaliação mais objetiva dos oito anos do lulismo não encontrará nenhuma reestatização do que fora privatizado por FHC. A proposta de reestatizar a Vale, outrora defendida pelo petismo, é um grande embuste para enganar uma parte da esquerda que se move por mitos. E Dilma, como ministra, comandou um processo de concessão de estradas que aumentou a competição entre as empresas privadas e até reduziu o preço do pedágio.
Quem tem um pouco de informação sobre o período Lula não acredita na propaganda antiprivatização. Honestamente, duvido que Dilma creia nisso. Trata-se apenas de um engodo, baseado na construção de uma caricatura de inimigo que seja bem assustadora. Sim, houve gente no governo Fernando Henrique que era privatista ao extremo, como também houve pessoas na atual gestão que não acreditavam por completo na “democracia burguesa”. Mas, felizmente para o país, tais grupos foram minoritários.

Os dois candidatos contribuiriam mais para o debate público se deixassem de lado tais engodos e discutissem a agenda real que terão de enfrentar. O Brasil avançou muito nos últimos 16 anos, mas há vários temas que precisarão passar por reformas difíceis no próximo governo. E aborto e privatização não estão nessa lista.
FERNANDO ABRUCIO é doutor em Ciência Política pela USP, professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e escreve quinzenalmente em ÉPOCA

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