sexta-feira, novembro 05, 2010

Alvorada Como apreciar 'Crepúsculo' nas telas

Alvorada
Como apreciar 'Crepúsculo' nas telas
Arthur Dapieve – O Globo – Segundo Caderno
Salvo hecatombe — ou mera mudança de agenda — amanhecerão hoje no Rio os atores americanos Kristen Stewart e Robert Pattinson, astros da série cinematográfica “Crepúsculo”. É tamanha a sua popularidade nas peles da humana Bella e do vampiro Edward que o Copacabana Palace reforçou a segurança, ainda mais que outros três ídolos dos adolescentes, os Jonas Brothers, estarão hospedados no hotel.
Kristen e Robert são esperados para fazer o reconhecimento das locações onde começarão a gravar, já no fim do mês, parte do quarto e derradeiro episódio da série, “Amanhecer”.
Notícias dão conta de que também virá o lobisomem Jacob, isto é, Taylor Lautner, que completa o triângulo amoroso da saga. No ano passado, ele e a moça estiveram no Brasil para lançar “Lua nova”, o segundo capítulo.
Ali, o Rio dava o ar da graça como paisagem cenográfica na janela do modesto cômodo no qual Edward tentava falar com a amada Bella ao telefone. E era embarreirado por Jacob.
Como eu sei? Nunca li os romances de Stephenie Meyer nos quais se baseiam os filmes, porque tenho outras prioridades de leitura.
Nem nunca fui ao cinema ver algum episódio.
No entanto, assisti com prazer aos que já estrearam nos canais por assinatura Telecine, “Crepúsculo” e “Lua nova”. Este, no sábado passado, quando uma gripe me deixou no estaleiro.
Gostei mais do primeiro, redondinho, mas isso não vem ao caso.
O que vem ao caso é o seguinte. Comentaristas culturais não deveriam passar ao largo de fenômenos como esse, descartando-os como “lixo” ou, eufemismo pedante, “mero entretenimento”.
A academia brasileira tolamente passou décadas desprezando a telenovela, por exemplo, numa postura neoadorniana.
Se a saga “Crepúsculo” faz tanto sucesso é porque atinge alguma área vital do que chamamos Humanidade. Não nos termos mais elaborados, o.k., mas atinge. Inclusive em quem já passou da adolescência.
Sem comparar os méritos dos livros que lhes deram origem, até porque não li nenhum deles, a série de cinema “Crepúsculo” atua mais ou menos na mesma faixa que outras duas: “O Senhor dos Anéis” (baseada em J.R.R. Tolkien) e “Harry Potter” (em J.K.
Rowling). As três conseguem o que muito escritor “sério” daria a mão direita para conseguir: criar um universo próprio, com lógica peculiar e personagens arquetípicos. Além disso, funcionam bem nas telas, como obras autônomas, sem necessidade de bula.
A diferença é que enquanto as fantasias de “O Senhor dos Anéis” têm tintas épicas e homoeróticas e as de “Harry Potter” remetem ao tradicional gótico inglês, as de “Crepúsculo” vêm embaladas no senso prático dos americanos médios. Nela, as metáforas mal pretendem disfarçar o verdadeiro assunto: o terror que é adolescer, ou seja, experimentar todas aquelas constrangedoras mudanças hormonais, corporais e comportamentais.
No cinema, são ressaltados três aspectos dessa fase da vida.
O primeiro a considerar é que, como todo adolescente, a principal protagonista da saga, Bella, tem um segredo que deve ser mantido a salvo de seus pais. Ele, chefe de polícia, está ocupado caçando o que imagina serem ursos nos cenários tempestuosos do estado de Washington. A mãe, então, é referência ainda mais distante: mora no Arizona. Bella não consegue, e nem parece lá muito interessada em comunicar-lhes os acontecimentos extraordinários pelos quais está passando. Eles não entenderiam.
Bella, aliás, não é uma adolescente idealizada, o que potencializa o processo de empatia com uma personagem que, de resto, teria tudo para ser antipática. Nem bonita nem feia, malvestida como a americaninha padrão, ela pouco sorri e parece estar sempre com enxaqueca. Uma “irmã” do vampiro Edward, a graciosa Alice (Ashley Greene), chega a lhe dizer, em “Lua nova”, que nunca conheceu uma pessoa tão propensa a “fazer coisas estúpidas e irracionais”. A perfeita definição do adolescente.
O segundo aspecto é, sobretudo para quem se sente tão só, o da importância das turmas, que asseguram inserção, entendimento e proteção.
Assim, Bella oscila entre a “família” do vampiro pelo qual é apaixonada e a galera do lobisomem que é apaixonado por ela. Cada clã destaca uma benção que também é uma maldição: o tormento da vida eterna ou a força incontrolável da natureza. Por qual nós optaríamos? Não dá para ficar bem com tudo mundo. Nem na fantasia as coisas são perfeitas.
Mas tudo é muito sexy.
E eis, afinal, o mais óbvio subtexto da saga “Crepúsculo”: a alvorada do desejo sexual.
Bella quer, Edward quer. Porém, ele reluta em, ao passar da intenção ao ato, condená-la ao vampirismo. As cenas dos dois são febris, um ai-jesus, não sei se posso, suspiro, arf arf. Tesão novo tem sempre algo de adolescente, de desajeitado. Nesse ponto, a série se estende ao público adulto, eternamente nostálgico do primeiro amor.
Ficamos esperando que todo romance de formação seja como “Retrato do artista quando jovem”, de James Joyce, ou “O apanhador no campo de centeio”, de J.D. Salinger. Não sacamos que hoje a educação sentimental — ou seja, a possibilidade de nos enxergarmos nos escritos alheios — pode passar por Stephenie Meyer. Ou, desde os tempos de nossos pais, pelo escurinho do cinema.
E-mail: dapieve@oglobo.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Skoob

BBC Brasil Atualidades

Visitantes

free counters