segunda-feira, outubro 11, 2010

Entrevista. Carlos Guilherme Mota: ''O caminho é republicanizar a república''

Entrevista. Carlos Guilherme Mota: ''O caminho é republicanizar a república''
Gabriel Manzano - O ESTADO DE S. PAULO
Historiador vê no debate sobre aborto sinais de uma "grande viragem", a valorização do voto moral. E avalia que o Brasil não cabe mais dentro do seu atual modelo político
Há alguma coisa muito errada quando, numa campanha presidencial, o que os candidatos mostram na TV não interessa ao eleitorado e o que o eleitorado discute não está no programa de partido nenhum. "Todo esse barulho que se faz a respeito do aborto é só um sintoma", diz o historiador Carlos Guilherme Mota, na foto. "Sintoma de um conservadorismo na sociedade, mas é muito mais que isso. Reflete um movimento profundo, uma insatisfação contra a crise de valores que impregnou o País."
E que movimento é esse? "É uma reação ao que eu chamaria de morte das utopias. As recentes "utopias" brasileiras, o PSDB e o PT, estão ficando superadas, cada uma por diferentes motivos. O Brasil não cabe mais dentro do modelo político que eles utilizam. Acho que estamos assistindo a uma grande viragem, a valorização do voto moral."
Autor de cerca de 30 livros, entre eles Ideologia da Cultura Brasileira, e estudioso há décadas da história social do País, o professor Guilherme Mota entende que, no debate religioso a que se assiste hoje, cujos estilhaços atingem a candidatura da presidenciável Dilma Rousseff (PT), "o importante não é debater a sua natureza conservadora - mas o vem lá do fundo. O embrião de uma nova sociedade civil". Nesta conversa com o Estado, ele afirma: "A polêmica sobre aborto é uma questão interna desses grupos religiosos. O que os candidatos têm de fazer é deixar claro que pretendem ser presidentes de um Estado que é laico. O caminho é republicanizar a república."
Este início de segundo turno parece dominado por uma onda conservadora, o debate sobre o aborto. Por que isso vem tão forte? Isso reflete um movimento mais profundo, uma mudança de mentalidade. Todo esse barulho que se faz sobre o aborto é só um sintoma. Resumir a isso o conservadorismo é reduzir demais o fenômeno. Na perspectiva do historiador, acredito que estamos vivendo uma grande viragem de mentalidade. Pode-se dizer que conservador, no caso, é todo um sistema político dentro do qual o Brasil não cabe mais.
O que significa isso? Que se não for a briga pelo aborto o problema vai aparecer por outra fresta. E os políticos ficam aí discutindo coisas tópicas na propaganda, deixando de lado o que interessa: qual o projeto de nação que oferecem? Aliás, já notou como a palavra "nação" desapareceu da paisagem política?
Mas o sr. não vê, por trás dessa polêmica religiosa, onde católicos e evangélicos estão juntos, um conflito entre conservadorismo e algo mais atual? Pode ser, mas o essencial é que essa polêmica é uma coisa estranha à política, estranha a uma campanha presidencial. O que tem de ser enfatizado é que o Estado brasileiro é laico. O que os dois candidatos à Presidência têm de fazer é deixar clara sua disposição de, uma vez eleitos, atuarem com presidentes de um Estado que é laico. O caminho é republicanizar a república."
Por que ela foi desrepublicanizada? Isso vem lá de trás. Temos um modelo republicano mal acabado, que ignora, como já disse, que religião não deve fazer parte de suas cogitações. Assim como esses grupos não têm de palpitar, ficar impondo seus paradigmas. Para seus fiéis, tudo bem. Mas cabe ao Estado se preservar contra ingerências descabidas. É uma repetição de fenômenos antigos de nossa história.
De quais fenômenos o sr. fala? Dos que ocorreram, por exemplo, lá pelos anos 70, quando a Igreja assumiu um papel de destaque na política, na defesa de alguns princípios. Eu já debatia isso na época, em pleno período militar, perguntando como se pode parir uma sociedade civil com uma alavancagem eclesiástica. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tinha um peso grande fora de seu universo religioso. Depois veio o PT e se mirou no modelo do sindicato Solidariedade, de Lech Walesa, na Polônia, que é um país bastante conservador. Ora, uma sociedade que se organiza a partir de diretrizes religiosas não é civil.
O que seria, na prática, republicanizar a republica? Aí é preciso olhar o todo. Comecemos com uma questão: é possível fazer política num País com uma educação tão primitiva? Acabamos de viver uma eleição presidencial na qual, como o proprio Estado informou, 64 milhões de eleitores, quase metade, são analfabetos ou têm primeiro grau incompleto. O historiador britânico Eric Hobsbawn já costumava definir o Brasil como "um monumento à irresponsabilidade social". Somem-se às velhas questões da inclusão social, não resolvidas, que o Brasil duplicou sua população em 40 anos, de 90 para 180 milhões de pessoas. É uma tarefa gigantesca planejar saúde, educação, cidadania para tanta gente. O previsível era que os desajustes se agravassem. Republicanizar é reordenar as tarefas.
Quais tarefas? Cadê a discussão sobre reforma política na campanha? Cadê a política universitária, sem a qual não daremos o salto tecnológico que permita ao Brasil tornar-se uma grtande nação? Por que não se discute a defesa? E a questão urbana? Os candidatos estão cientes de que se vive uma guerra civil nas cidades? Alguém está disposto a avaliar o risco ambiental do pré-sal? É proibido falar da cultura, dos rappers, dos grafitti, que gritam por uma sociedade fora do sistema? Podia dizer muitas outras coisas, mas fico nessas e fecho com mais uma: os candidatos deveriam é propor medidas para coibir a mercantilização da fé e contra a manipulação e exploração da credulidade popular. Mas sei que é difícil falar disso, num País que assiste à morte das utopias.
De que utopias o sr. fala? Das duas utopias políticas, , o PSDB e o PT. Ambos estão envelhecidos, porque assimilaram demais as velhas heranças, os modos antigos de comandar, com que se administrava um país injusto. Um desses modos, um modelo social-democrata que desidratou, não formou bases sociais. O que se propunha como uma realização liberal deu em fracasso. O lulismo, que veio depois, também se ajustou demasiado a um sistema que já não serve e não dá as respostas que o futuro exige. Um resultado de tudo isso: não conseguem explicar convincentemente ao distinto público e que o aborto é uma questão de saúde pública, e pronto.

O sr. falou no início em viragem moral. Isso não lembra o moralismo da velha UDN, nos anos 50? Não, porque o de agora não é um moralismo colocado como valor ideológico por um partido. Temos uma parcela de pequena burguesia ascendente, e crítica, em busca desse um modelo social que nem tucanos nem lulismo oferecem. Olhand0 lá atrás, também não é a sociedade civil dos tempos de JK, nem do período militar, que era extremamente despolitizada, nem a do início da redemocratização.
Nessa sociedade a que o sr. se refere, qual o papel das novas classes ascendentes, C, D, ou E, que se fortaleceram com os programas sociais? Acho que há um certo problema em se chamar de A, B, C, D. Prefiro dizer, no geral, que há uma ascensão de uma pequena burguesia, num setor de serviços, por exemplo, com outros valores, com mais exigências, e isso impacta a vida política. Mas impacta de maneira perversa, pois ao lado desses novos quadros surgem os Tiriricas. O que se percebe de bom, no meio disso, é o efeito Marina Silva. Não tanto por sua candidatura, por sua pessoa, mas porque ela representou na eleição um símbolo disso tudo que desponta, essa viragem de que falei no começo. Ela traz essa mensagem: temos é que olhar para o futuro. Lembrou que partidos precisam ter valores e coerência ideológica. E que precisamos do meio-ambiente para deixar para futuras gerações.
Podemos resumir, enfim, que conservadora é a política e o País não cabe mais no aparato político atual. Nem no político, nem no institucional. No vazio, acabam aparecendo frentes novas, gente sem os velhos vícios. O pessoal das ONGs, os ativistas da cultura, promotores e juízes. Mas é tudo muito lento e, na política, mais difícil. Lembro aqui uma frase de William Faulkner: "O passado nunca morre. Ele nem é passado." Eu diria que, no Brasil, ainda muito mais. Esse é o desafio.

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