segunda-feira, outubro 11, 2010

Hamlets da Babilônia

Hamlets da Babilônia
FERNANDA TORRES
O embate entre os valores medievais e modernidade não é privilégio do Brasil: o mundo vive guerra santa
EM SEU LIVRO "Shakespeare, a Invenção do Humano", Harold Bloom define Hamlet como o personagem fundador da subjetividade do homem moderno e faz a pertinente observação de que o príncipe dinamarquês, primeiro herói dotado de consciência, se encontra cercado no palco por coadjuvantes unidimensionais, reis e rainhas saídos da negra Idade Média.
A eleição de 2010, que teve três candidatos de esquerda, duas mulheres no páreo e temas progressistas, como o desenvolvimento sustentável, em pauta, entra na sua fase final -quem diria- enfrentando o "ser ou não ser" que atazana o homem desde os primórdios da humanidade: a crença em Deus.
Marina Silva, apesar de ter calcado sua mensagem na ecologia, abria sempre seus pronunciamentos com um agradecimento a Deus.
Sempre estranhei a mistura entre Estado e religião, mas a naturalidade com que a ex-ministra evocava o Ser supremo jamais me fez duvidar de sua genuína relação com o divino.
Com Dilma foi diferente. No último debate na Rede Globo, me impressionou a menção a Deus feita pela candidata na conclusão do programa. Eu ainda não sabia das acusações de que ela blasfemara ou da polêmica sobre o aborto, difundidas via internet.
Dilma se referiu ao Senhor com a mesma objetividade pragmática com que mudou o cabelo, botou salto alto e enfrentou o desconforto da exposição pública inerente a uma candidatura. São os sacrifícios de uma missão maior, o projeto político de chegar ao poder.
Existe uma coerência entre a jovem Dilma guerrilheira e a mulher arrumada de hoje, que reprova o aborto e se ajoelha aos céus.
Na sua juventude, a revolução exigiu dela uma vida reclusa em aparelhos que mais pareciam claustros, o voto de silêncio da clandestinidade e as torturas medievais dos porões dos quartéis. Hoje, a abnegação é de outra ordem. É a da exibição às massas.
Lula se formou nos palanques; Dilma, em reuniões secretas e depois nos gabinetes. São trajetórias opostas. Lula faz qualquer ato parecer espontâneo aos olhos do eleitor; Dilma age com a perseverança de quem cumpre uma doutrina.
A esquerda radical já acusou o futebol e a religião de serem o ópio do povo, mas existe um paralelo muito grande entre comprometimento religioso e devoção política: ambos exigem entrega absoluta.
O crescimento das igrejas evangélicas no Brasil ameaça as raízes do sincretismo que nos formou. Com o perdão do trocadilho, os "crentes" não admitem outros credos.
Esse eleitorado, aliado ao lado mais conservador da Igreja Católica, fez diferença nas urnas, e agora é preciso adulá-lo.
Dilma declarou que o aborto era uma questão de saúde pública e depois voltou atrás. Acredito que, por ela, assim como por muita gente, sua criminalização seria revista. Mas tenho certeza de que Dilma não mexerá no vespeiro.
Serra deve concordar com Dilma mas, no momento, se faz de invisível. A marola não molhou o seu pé. Ainda não o vi agradecer a Deus, mas deve estar perto.
As próximas semanas prometem.
O embate entre o obscurantismo medieval e a sociedade tecnológica de agora não é privilégio do Brasil: o mundo enfrenta uma guerra santa.
Somos todos um bando de Hamlets na Babilônia.

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