quarta-feira, agosto 04, 2010

Os drones e a Burca

Mundo
Os drones e a Burca
A dramática escalada dos conflitos que opõem muçulmanos a não muçulmanos
Paulo Nogueira, de Londres

Um grupo semissecreto tem chacoalhado a Inglaterra com manifestações em várias partes do país. Seus integrantes não se identificam publicamente. Muitos vestem máscaras quando participam de passeatas. São brancos, nacionalistas e, na maior parte, de classe média. Pertencem à recém-formada EDL (de English Defense League, Liga de Defesa Inglesa). Afirmam não ser racistas, mas, ao sair às ruas das cidades inglesas, gritam palavras de ordem contra uma raça específica – gente de pele escura, vinda de fora, unida em torno da devoção ao profeta Maomé. É a comunidade muçulmana, cerca de 2,5 milhões de pessoas dentro da população de pouco mais de 50 milhões do país. A EDL quer defender seu país dessa comunidade, que para ela está fazendo com que a Inglaterra deixe de ser a Inglaterra. No mundo ideal, para os membros da liga, os emigrantes muçulmanos voltariam a sua terra, a despeito de complicações de ordem prática. A maior parte deles ocupa há décadas posições indesejadas pelos ingleses, por ser encaradas como atividades de segunda ou terceira linha, como guiar táxis, limpar pratos ou cuidar da segurança de residências.
A EDL são três letras a mais num cenário especialmente dramático na Inglaterra, na Europa e no mundo. Nunca foi tão bélica, tão destrutiva e tão desoladora, em termos de perspectivas, a convivência entre muçulmanos e não muçulmanos. Os maiores símbolos de um conflito que parece apenas crescer estão, pelo lado ocidental, nos drones americanos, os aviões teleguiados que despejam mísseis que vêm matando um bom número de militantes de movimentos extremistas – mas também crianças, velhos e mulheres. Pelo lado muçulmano, a simbologia maior da destruição está nos homens bombas – fanáticos que não hesitam em explodir o que quer que seja e quem quer que seja em seu jihad, a “Guerra Santa” movida contra os infiéis. Até a burca, o véu muçulmano que protege a modéstia da mulher, se transformou, mais de 1.000 anos depois de ter aparecido, num ícone dos desentendimentos.
Esse quadro tinha sido previsto nos Estados Unidos, há quase 20 anos, por um pensador político, Samuel Huntington. Encerrada, com o colapso da União Soviética, a Guerra Fria que capitalistas e comunistas mantiveram depois da queda do nazismo, Huntington escreveu um artigo em que antecipou o que definiu como “Choque de Civilizações”. A discórdia, segundo ele, não adviria mais de ideologias opostas, mas de culturas e religiões diferentes. Huntington estava dando uma resposta a um artigo célebre de outro pensador político, Francis Fukuyama, que decretara o “fim da história” quando o comunismo sucumbiu. A história terminara com a hegemonia americana, segundo Fukuyama. Huntington refutou e, goste-se ou não, os fatos acabaram mostrando que a razão estava com ele.
 
O antagonismo de civilizações na Europa chegou a países antes tolerantes, como a Holanda
Desde que Huntington formulou sua tese premonitória, o mundo foi sacudido por episódios como o 11 de setembro, as guerras do Afeganistão e do Iraque e o 7/7 – as cifras com que ficou conhecida a explosão de bombas por suicidas no metrô e num ônibus de Londres em 7 de julho de 2005, em que morreram 52 pessoas. Foi nessas ocasiões funestas que emergiram as figuras e os grupos centrais do conflito. Por exemplo, Osama Bin Laden, o líder da Al-Qaeda, o grupo que derrubou as torres gêmeas de Manhattan espetacularmente, com os aviões sequestrados e guiados por terroristas em setembro de 2001. Ou George W. Bush, o presidente dos Estados Unidos que respondeu com bombas e mísseis à emergência de suicidas dispostos a matar e a morrer por Alá.
Um papel de destaque também foi jogado por Tony Blair, o primeiro-ministro britânico que se alinhou automaticamente com Bush na Guerra do Iraque. Hoje, longe da política, Blair tem sido instado a dar explicações sobre uma decisão que, para a Grã-Bretanha, foi simplesmente catastrófica. Para convencer o Parlamento a apoiar a guerra, Blair afirmou que o ditador iraquiano Saddam Hussein possuía armas de alto poder de destruição. Derrubado Saddam, verificou-se que não era verdade.
Num depoimento dado há poucos dias num doído inquérito sobre a participação da Grã-Bretanha na Guerra do Iraque, a chefe do serviço de inteligência (MI 5) naqueles dias, a baronesa Manningham-Bulle, disse que não se surpreendeu quando soube que entre os terroristas do 7/7 estavam britânicos. “A Guerra do Iraque radicalizou uma geração de islâmicos”, disse ela. Não havia “inteligência suficiente”, afirmou ela, para a tomada da decisão de mandar tropas para o Iraque. O que existia, isso sim, era um cálculo equivocado, segundo o qual, derrubado Saddam, as coisas estariam resolvidas. Os insurgentes – como são designados os iraquianos que combatem os americanos e aliados estacionados em solo iraquiano – foram uma surpresa imensamente desagradável para as forças ocidentais.
A baronesa também disse outra coisa que todos sabem: a presença no Iraque aumentou substancialmente o risco de terror no Reino Unido, por atrair ódio vindicativo islâmico. Recentemente, o governo britânico ampliou o grau de alarme e precaução contra o terrorismo. Hoje, simplesmente elogiar o “martírio”, como os islâmicos chamam a morte pela causa, é motivo para você ser preso na Inglaterra. Não surpreende que Blair esteja sendo definido, por pacifistas, como “criminoso de guerra”. No mesmo inquérito, há poucos meses, ele afirmou ter feito o que tinha de fazer, mas provavelmente terá de encontrar argumentos melhores para escapar de consequências da adesão a Bush.
Nestes dias, a mãe de um soldado britânico morto no Oriente Médio disse uma frase que ecoou pela mídia. “Meu filho morreu numa guerra que não é nossa”, afirmou ela. Um derradeiro ponto irônico na Guerra do Iraque é que, com a remoção de Saddam, o país, que era fechado a Bin Laden, se abriu para ele. O desconforto com a ação militar no Oriente Médio recrudesceu nos últimos dias no Reino Unido, com a divulgação de mais de 90 mil documentos secretos dos Estados Unidos sobre a Guerra do Afeganistão pelo site Wikileaks (leia a reportagem na pág. 82).
O clima de antagonismo ríspido entre as diferentes civilizações alcançou até países habitualmente pacatos e tolerantes com imigrantes. É o caso da Holanda. Hoje, uma das lideranças proeminentes holandesas é um político de extrema direita, Geert Wilders. Ele está coordenando a criação de uma frente anti-islã que congregará alguns países a partir de 2011. Cabelos loiros e um palavreado veemente, Wilders compara o Corão, o livro sagrado muçulmano, a Mein Kampf, a autobiografia em que Hitler avisou nos anos de 1920 que faria tudo o que realmente fez. Num curta-metragem, Wilders reuniu passagens do Corão com mensagens agressivas contra os infiéis. Não foi um golpe exatamente limpo: você também encontra no Velho Testamento passagens em que Deus parece tomado de um ódio sem limites.
Wilders, desde que fez o vídeo, recebe proteção especial da polícia. Está viva na lembrança dos holandeses a tragédia de Theo Van Gogh, homônimo e descendente do irmão do grande pintor. Theo, em 2005, fez um documentário de dez minutos sobre a mulher islâmica chamado Submissão. Foi parceiro, no projeto, de uma emigrante da Somália, Ayaan Hirsi Ali, que deixara o islamismo ao se instalar na Holanda. Pouco depois de lançado o vídeo, Theo foi morto quando andava em sua bicicleta preta pelas ruas de Amsterdã. O assassino, um extremista islâmico, cravou um bilhete no peito de Theo em que avisava que a próxima da lista era Ayaan. O episódio está contado no livro Infiel, a autobiografia de Ayaan. Ela acabou deixando a Holanda e hoje vive nos Estados Unidos, onde recebe tratamento especial por suas posições contra o islã, estrategicamente interessantes para o governo americano.

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