quarta-feira, setembro 22, 2010

Os fatos e as aparências

Os fatos e as aparências
Wilson Figueiredo - JORNAL DO BRASIL
O incêndio que lavrou na casa civil nos últimos dias é daqueles cuja origem é tão recorrente quanto os que começam nas casas de máquina dos navios em alto-mar. Não foi simulação para treinamento mas tentativa de confundir os fatos com as aparências, sem esquecer que o presidente Lula gosta de ser o último a saber, mas o primeiro a falar mal da imprensa. A sucessora de Lula terá de se contentar com as sobras da tentativa de abafar o caso e com as consequências. Não há memória de que a Casa Civil trabalhe com produto que costuma ser classificado nos jornais como material de fácil combustão.
Na Casa Civil da Presidência da República, a propagação do fogo chamuscou a figura de Erenice Guerra, que ia ser o eixo da articulação entre o governo Lula e o governo Dilma. Erenice não fez bem o papel de Joana d’Arc. Falhou a tentativa de salvar a cabeça de ponte construída, de fora para dentro do Brasil, com trânsito numa única direção. O resto foi de cambulhada. Para não perder o hábito dos excessos verbais, Lula falou mal dos jornais antes que a imaginação do público suprisse com versões depreciativas a fartura de abusos que se apresentam ao fim dos seus dois mandatos.
No apertado espaço oficial, José Dirceu mantém a forma e consola o petismo nos momentos finais. O problema do PT é depender da informação alheia, pela persistente falta de coragem de criar e manter jornais, revistas e editoras que sustentassem uma linha própria de ideias e informações. E, de resto, alimentasse o debate político acima desta mesmice e ocupasse o centro de um debate nacional permanente, sem se dedicar ao varejo periférico no vazio de ideias.
A esquerda já desempenhou papel mais atuante no pensamento brasileiro. O velho PCB,cuja lembrança sobrevive no respeito geral e no carinhoso aumentativo, mantinha canais diretos e indiretos para levar ao público pontos de vista críticos sobre fatos e ideias políticas, no Brasil e no mundo, ambos em transformações. De jornais diários a editora de livros e revistas, discursos e ensaios faziam ou arejavam as cabeças enquanto existiu liberdade de imprensa.
O presidente Lula costuma lembrar aos petistas que ficou devendo sua eleição à imprensa, mas não ressalva que teve tratamento objetivo mesmo nas três campanhas em que abria à esquerda, sem considerar a distância que o separava da sociedade. Não foi diferente na eleição e na reeleição de Lula, nas quais ele se comprometeu, em carta aberta, em ter na Constituição a referência responsável. Nem no episódio do mensalão, no qual os jornais podem ter faltado à objetividade, na corrida pelos fatos, mas não inventaram o que foi publicado e nunca desmentido.
No primeiro mandato, quando o mensalão se apresentou, o presidente se declarou o último a saber (e, mais tarde, quando a Justiça o ouviu, retificou que, desde o começo, esteve a par do que se passara). Lula deve à liberdade de imprensa e aos eleitores, mas não aos jornais, a eleição e a reeleição. Não ficou devendo o terceiro mandato, porque sentiu em tempo que estava na contramão da democracia e que a opinião geral repudiou a hipótese, contornada por ele com a candidatura Dilma Rousseff, do mandato tampão, até agora suficiente para lhe reservar o acesso ao quarto governo petista em 2014.
Claro, se tudo correr normalmente e contar com os pequenos partidos mas grandes mercadores da República. Se o presidente tem alguma questão de consciência em relação ao incêndio na Casa Civil, que cumpra então aquela sentença com que fulminou os quedeixarem impressões digitais nos fatos já públicos e nos que ainda virão. Como, mais uma vez, o próprio Lula vociferou, sem pretensão de ser original, “doa a quem a doer”. Sem doer é que não.
A História tem um cemitério de jornais que pretenderam dispor de liberdade exclusiva, mas que não passa de negação da própria liberdade.

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