quinta-feira, outubro 14, 2010

Francisco Bosco - 'Tropa de elite 2'

Francisco Bosco - 'Tropa de elite 2'
O Globo – Segundo Caderno
A cena em que Nascimento surra um político é das maiores catarses coletivas da nossa arte
 Assim como no filme de que se origina, “Tropa de elite 2” demonstra logo de cara uma habilidade técnica impressionante, que nos faz pensar que esse cinema brasileiro conquistou Hollywood, no sentido de dominar suas técnicas de filmagem. Só que não é preciso muito tempo de filme para nos darmos conta de que ele dá um passo além: incorpora as virtudes dramáticas maiores do cinema americano, sem incorrer nos seus maiores erros. “Tropa de elite 2” tem um ritmo de tirar o fôlego, seu protagonista passa por um amplo arco dramático, ativa mecanismos emocionais de identificação, mas faz tudo isso sem baratear a complexidade, enorme e irredutível, da sociedade real de que ele é o espelho, à maneira da ficção. Isso, acho eu, nenhum cinema dos EUA faz. Não me ocorre outro filme, em escala mundial, que seja capaz de conciliar, com essa intensidade, história pessoal e coletiva, perfeição estilística com alta complexidade política. Fico com a sensação de estarmos diante de um marco do cinema, da cultura e da sociedade brasileiros.
Quando “Tropa de elite”, o primeiro, estreou, eu estava fora do Brasil. Assisti ao filme logo que cheguei e estive entre aqueles que ficaram do seu lado, percebendo nele maturidade cinematográfica e social. Mas com uma ressalva importante. De fora do Brasil eu tinha lido algumas críticas ao filme; acusava-se-o de ser “fascista”. Apesar de essa palavra ter sido em geral empregada sem precisão conceitual, e sem que se encarasse o problema teórico que essa acusação implicava, pareceu-me que ela continha uma verdade.
Com efeito, “Tropa de elite” privilegiava a perspectiva do Capitão Nascimento. Esse personagem, que por sua vez representava a perspectiva do Bope, era filmado sempre num registro de proximidade: víamos de perto seu suor frio, suas fobias, suas esperanças, o nascimento de seu filho em meio a uma operação policial.
Já os traficantes, esses eram filmados à distância, não conhecíamos sua história em profundidade. Numa palavra, a proximidade humaniza, a distância desumaniza.
A acusação de “fascista” parecia-me remeter a esse problema de desequilíbrio de perspectivas. Ela envolve um problema teórico, que consiste em identificar uma intenção da forma no filme, já que, em ficção, não se pode deduzir da moral de um personagem que ela seja a mesma do diretor, e condenar essa em nome daquela. Esse problema não foi bem enfrentado na época. A perspectiva correta de o fazer, na minha opinião, seria a indicada acima: descrever como, formalmente, o filme humaniza e desumaniza diferentes personagens.
Pois bem, um dos maiores ganhos ideológicos de “Tropa de elite 2” reside na pluriperspectiva, tensa e irredutível, de que o filme é tecido. Não há privilégio de proximidade concedido a Nascimento (isto é, ao Bope, de que ele agora nem faz parte diretamente).
Sua perspectiva é relativizada, em igualdade de forças, pela do professor e em seguida deputado Fraga, combatente desarmado das milícias e da corrupção, defensor dos direitos humanos dos presos e da legalidade. O roteiro vale-se do expediente de casar a ex-mulher de Nascimento com Fraga, seu a princípio maior opositor, e que agora educa seu filho. Essa situação estrutural propicia dilemas subjetivos que se entrelaçam aos coletivos com rara sutileza em filmes, como esse, ostensivamente políticos.
É oportuno observar que o filme recupera o valor semântico da palavra “sistema”, tão desgastada pelos discursos paranoicos e inconsistentes que abusaram de seu uso nas últimas décadas. Em “Tropa de elite 2”, o sistema é descrito minuciosamente, em seu caráter de estrutura complexa que, como toda estrutura, almeja sua manutenção e transcende as pessoas concretas que em dado momento ocupam nela os seus lugares.
Assim, a PM é totalmente corrupta, o tráfico de drogas é expulso pelo Bope mas abre espaço para as milícias, que por sua vez são formadas por PMs e associadas a parte da mídia e, finalmente, aos políticos. Reside aí o outro ganho ideológico do filme: na identificação, em meio a tanta complexidade social, do verdadeiro inimigo. Por sobre toda a teia quase inextricável de ilegalidade e barbárie, vemos a mão dos políticos manipulando os títeres, que se matam entre si jogando um jogo cuja finalidade última é manter os políticos no poder.
O caráter autotélico da política brasileira nunca tinha sido mostrado com tanta clareza e contundência.
Poder-se-ia objetar que todo mundo sabe que a política institucional é o problema decisivo do Brasil.
Mas, justamente, a conclusão não é a mesma quando os argumentos que a preparam são superiores, em precisão e abrangência, como no caso do filme. Daí que a cena em que Nascimento surra um político seja uma das maiores catarses coletivas da História de nossa arte: o momento em que a Justiça se ergue sobre o Direito, já que este está tantas vezes a serviço da injustiça.
Há ainda uma janela utópica, também necessária para insuflar nossas esperanças, na cena em que Nascimento, finalmente unido a Fraga, denuncia a polícia militar e os políticos na presença destes.
E a cena final do filme, sobrevoando o Palácio do Congresso Nacional, é de uma tal coragem que nos faz pensar que a política pode estar voltando a ser real.
Quero declarar aqui minha enorme admiração por José Padilha e toda, toda a equipe responsável pelo filme.
E dizer que é uma honra viver na mesma época que Wagner Moura.

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