quinta-feira, outubro 14, 2010

Pacto sobre o aborto

Pacto sobre o aborto

Zuenir Ventura – O Globo

A julgar pelo primeiro debate, essa campanha corre o risco de descambar para uma baixaria que não merecemos. Afinal, não foi para isso que se quis um segundo turno — não foi para discutir o aborto, ou melhor, para substituir a discussão por uma troca de acusações pautada pela hipocrisia. O tema é por demais importante para ser deturpado eleitoralmente. Trata-se de uma prática clandestina que, como mostrou O GLOBO domingo, leva à morte uma brasileira a cada dois dias. “Le Monde” incluiu a questão entre nossos “arcaísmos e tabus”, lamentando: “É uma pena que esse grave problema social, em vez de incentivar um verdadeiro debate, esteja sendo usado como máquina de guerra eleitoral.” Para impedir isso, Dilma e Serra poderiam firmar um compromisso ético, uma espécie de pacto de não agressão.
Considerando a origem e formação cristã deles, é difícil acreditar que a linha divisória entre os dois seja mesmo a questão religiosa e que o que pensam sobre o aborto seja tão divergente a ponto de transformar o tema no centro desta campanha.
Não creio que suas opiniões no caso sejam tão antagônicas e inconciliáveis assim. O acordo tácito procuraria romper a cortina de obscurantismo que envolve a questão. Seria um gesto duplo de boa fé por meio do qual cada lado exporia suas ideias sem medo de que o outro lado explorasse grosseiramente suas afirmações.
A primeira cláusula deveria proibir que fossem usadas mensagens sub-reptícias do tipo “Fulano (ou Fulana) é a favor da vida”, que sugere ser o outro ou a outra “a favor da morte”, o que é uma insinuação perversa.
Sei que é uma ingenuidade política propor uma coisa dessas num processo em que a lógica é a do resultado e a ética que predomina é a da eficácia dos fins, não a da legitimidade dos meios. Será que os dois candidatos teriam coragem? Será que os marqueteiros resistiriam à tentação de recorrer a expedientes que são espúrios, mas que acabam rendendo votos, como renderam em outras eleições? Em 2006 (para não ir mais longe, ao caso de Lurian, a filha de Lula), a deputada Jandira Feghali, que é pela descriminalização do aborto, perdeu uma eleição praticamente ganha para o Senado por causa de uma onda de panfletos e boatos acusando-a de “assassina de criancinhas”.
Talvez para fugir ao patrulhamento fundamentalista é que Dilma e Serra sejam tão ambíguos em relação ao tema. Ela já foi a favor e agora é contra. Ele fica na corda bamba: “Eu nunca disse que sou contra o aborto, até porque sou a favor”, declarou, para em seguida consertar: “Eu nunca disse que sou a favor, até porque sou contra o aborto.” Nem todo mundo prefere perder ganhando a ganhar perdendo.

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