sábado, setembro 11, 2010
Fetiche
Fetiche
Fernanda Torres – Veja Rio
Não fiz faculdade. Dependo da bondade alheia para ordenar meu conhecimento. Eu e a Blanche DuBois. Quando João Ubaldo Ribeiro me segredou seu incômodo com relação à repetição da palavra “enlouquecida” em uma apresentação de A Casa dos Budas Ditosos, e pediu que eu checasse no texto para ver se não era “ensandecida” e “enlouquecida”, e confessou sua irritação por ter repetido “ânsia” duas vezes em Viva o Povo Brasileiro, passei a sofrer de TOC com toda e qualquer replicação do vernáculo. Agora, que escrevo com mais frequência, percebo quanto enraivece o retorno aos mesmos “poréns”, “contudos” e “todavias”. Encontrei antídoto para tal pobreza no Dicionário de Sinônimos e Antônimos do Antônio Houaiss. Hoje, se não o tenho à mão, sofro de síndrome de abstinência. Descobri o prazer de folheá-lo mesmo quando não preciso, só pelo puro exercício das associações.
Depois do Houaiss, não fiquei mais chateada, e sim zangada, aborrecida e enfezada com a minha bronquice e, ignorante, me dei por satisfeita com as novas fronteiras do meu português. Foi quando a professora de inglês do meu filho me recomendou, entusiasmada, o recém-reeditado Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Sem ter noção do que se tratava, na mesma tarde fui à livraria adquirir um exemplar. Para não perder a viagem, ainda arrematei um segundo, o Etimológico, de Antônio Geraldo da Cunha.
Meu horizonte, até então reto, se curvou em direção ao infinito. O Dicionário Analógico tem um prefácio deslumbrante de Chico Buarque que, sozinho, já vale o gasto. É uma obra de associação de ideias. Perto dele, o de sinônimos e antônimos parece o bê-á-bá. Ainda estou apanhando para aprender a usá-lo, é humilhante. O quadro sinóptico, ou resumido, divide as palavras em categorias, como se fossem os reinos animal, vegetal e mineral. São definições como Dimensão, Tempo, Causas, Quantidade, Mudanças, Espaço... É como se todo conhecimento, concreto, abstrato, sensorial e racional, pudesse ser classificável. O livro é uma espécie de árvore genealógica de tudo o que tem nome. É imperdível.
O Etimológico eu ainda nem abri. É outro admirável mundo novo para uma besta quadrada que nem eu. Mas esse, pelo menos, eu sei do que se trata; o outro, eu não sabia nem que existia. Por coincidência, meu filho está se aprofundando em gramática na escola e começa a enfrentar as leis da escrita. Eu, que estudei em colégio experimental e tudo o que aprendi foi por osmose, dedução e pura sensibilidade, estou aproveitando para repassar as noções básicas de acentuação, os pretéritos imperfeitos e os futuros do pretérito. Nunca tive prazer de aprender as normas do português, apesar de sempre ter me saído bem em redação. Cresci com a impressão de que o estudo gramatical era espinhoso. Hoje, tenho pena de mim por só saber o lado empírico das convenções.
Uma curiosidade a respeito desse mais novo fetiche. Apesar de ter investido em um iPad em recente viagem, e de adorar matar as dúvidas de maneira rápida pela internet, o dicionário de papel é um objeto de arte e possessão. Poder segurá-lo inteiro dá a noção real daquilo que se desconhece. Ao procurar um vernáculo, visitam-se milhares de outros num passar de olhos, é um processo de sedução e curiosidade. Tenho amor pelos romances que manuseei, folha a folha, e pelos cantos em que fiz anotações. Quase todos os dias passo em uma livraria, só para ver o que anda por lá. Mas um romance se lê em linha reta, qualquer computador dá conta. O ir e vir do dicionário, não, esse só a bisbilhotice do tato sossega.
Fernanda Torres
e-mail: fernanda.torres.vejario@gmail.com
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário