terça-feira, setembro 28, 2010

IMPASSE CONSTITUCIONAL Conceito de processo eleitoral rachou o Supremo

IMPASSE CONSTITUCIONAL
Conceito de processo eleitoral rachou o Supremo
POR RODRIGO HAIDAR
O Supremo Tribunal Federal deverá se debruçar novamente, na próxima quarta-feira (29/9), sobre o recurso do ex-candidato ao governo do Distrito Federal, Joaquim Roriz (PSC). Ele recorreu contra a decisão do Tribunal Superior Eleitoral que indeferiu o registro de sua candidatura. Desta vez, os ministros julgarão a desistência do recurso feita nesta sexta-feira (24/9) pelo advogado do político, Alberto Pavie Ribeiro.
 A discussão de 11 horas sobre o caso do ex-candidato na quinta-feira, contudo, não foi em vão. Ministros afirmam que por se tratar de recurso no qual foi reconhecida a repercussão geral por unanimidade, o teor dos votos pode ser utilizado em outro processo que conteste a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/10). Com a desistência de Roriz de concorrer ao governo do DF, o recurso perde o objeto. Mas os casos nos quais há repercussão geral ultrapassam o interesse das partes. Por isso é que se podem usar os fundamentos em outra ação.
 O Supremo tem um precedente sobre desistência em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida. No Recurso Extraordinário 572.499, cuja relatora foi a ministra Cármen Lúcia, decidido em março deste ano, o tribunal julgou prejudicado o recurso em razão de desistência porque havia na Corte outros casos que discutiam a mesma tese. Há no Supremo outros recursos que questionam a eficácia da Lei da Ficha Limpa.
 Em todos os casos os advogados alegam, preliminarmente, que a lei feriu o artigo 16 da Constituição Federal, que fixa o chamado princípio da anterioridade, segundo o qual qualquer lei que influa nas eleições tem de esperar o prazo de carência de um ano a partir da data de sua publicação para ser aplicada.
 O artigo 16 diz o seguinte: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. O racha entre os ministros, que impediu o presidente do STF, ministro Cezar Peluso, de proclamar o resultado do julgamento, se deu exatamente pelas diferenças entre o conceito do que é processo eleitoral.
 A Lei Complementar 135 foi publicada em 7 de junho deste ano. Assim, só poderia valer de fato a partir de 7 de junho de 2011. Na prática, só se aplicaria aos candidatos a partir das eleições municipais de 2012. Esse é o entendimento dos ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso.
 Os outros cinco ministros — Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Ayres Britto e Ellen Gracie — entendem que sua aplicação é imediata porque novas hipóteses de inelegibilidade não alteram o processo eleitoral. Logo, não teriam de cumprir o prazo de carência de um ano previsto na Constituição Federal.
 Sobre este ponto é que se deu o impasse. Para os ministros que defendem a aplicação imediata da lei, só tem poder de interferir no processo eleitoral uma regra que desequilibra ou deforma a disputa. Como a Lei da Ficha Limpa é linear, ou seja, se aplica para todos indistintamente, não se pode afirmar que ela interfere no processo eleitoral. Logo, sua aplicação é imediata.
 Para os que sustentam que a lei deve obedecer ao prazo fixado no artigo 16 da Constituição Federal, não ha interferência maior no processo eleitoral do que estabelecer novas regras que criem restrições para que um cidadão se candidate. “Ninguém em sã consciência pode afirmar que a Lei Complementar 135 não altera o processo eleitoral”, afirmou, nos diversos julgamentos sobre o tema dos quais participou até agora, o ministro Marco Aurélio.
 Os ministros discordaram até de quando se inicia o processo eleitoral. Para a maior parte do time pró aplicação imediata da lei, o processo se inicia com as convenções partidárias, que pela Lei Eleitoral devem ser realizadas entre 10 e 30 de junho, e com os registros de candidatura, que devem ser feitos até as 19h do dia 5 de julho.
 Para a outra metade do Supremo, o processo eleitoral começa um ano antes das eleições, com o fim do prazo para as filiações partidárias. Se para concorrer o candidato tem de estar filiado ao partido um ano antes das eleições, é nesta data que começa o processo rumo ao próximo pleito. Para a advogada Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro, essa é a tese que deveria prevalecer.
 “O marco inicial do processo eleitoral deve ser considerado o prazo final para a filiação partidária, que ocorre um ano antes das eleições”, afirma Maria Cláudia. Para a advogada, é necessário evitar que alterações nas regras do jogo valham depois disso. “Imagine se uma lei fixar, depois do prazo de filiação partidária, que para concorrer os cidadãos têm de estar inscritos nos partidos há pelo menos um ano e meio, em vez de um ano. Não há alteração no processo eleitoral?", questiona.
 Para o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, pouco importa quando vem a lei, se ela gera qualquer perturbação das eleições, tem de se submeter à carência constitucional de um ano.
Batalha jurisprudencial
Os votos de todos os ministros da Corte fizeram referência a um precedente específico: o julgamento do RE 129.392, julgado em 17 de junho de 1992. Na ocasião, o Supremo decidiu, por seis votos a cinco, que a Lei Complementar 64, sancionada em 13 de maio de 1990 e que trazia novas regras de inelegibilidade, tinha aplicação imediata porque não alterava o processo eleitoral.
 Naquele julgamento, o entendimento da maioria dos ministros foi o de que a lei trazia uma complementação exigida pelo parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição, que fixava que lei complementar estabeleceria novas hipóteses de inelegibilidade. Assim, um artigo da Constituição (o artigo 16) não poderia ser aplicado para negar aplicação a outros artigos da própria Constituição.
 Na última quinta-feira (23/9), a ministra Cármen Lúcia citou o voto do ministro Moreira Alves na ocasião, para quem o artigo 16 da Constituição visava apenas proteger o chamado casuísmo de véspera, ou seja, mudança legislativa destinada a favorecer a própria classe política. Mesmo que alterasse a lei eleitoral, a aplicabilidade deveria ser analisada e ponderada pelas suas finalidades, e não apenas pelo tempo de vigência.
 Em maior ou menor grau, todos os ministros que votaram a favor da aplicação imediata da Lei da Ficha Limpa votaram neste sentido. Também foram unânimes em sustentar que a Lei Complementar 135/10 tem índole constitucional e não se comporta no simples âmbito do processo eleitoral porque veio preencher lacuna por determinação da própria Constituição Federal.
 Os ministros também entendem que a lei foi publicada “bem antes” do prazo final para o registro das candidaturas. Por isso, os que se inscreveram já tinham ciência das restrições impostas pela nova norma. É ainda opinião comum do time da aplicação imediata da Lei da Ficha Limpa que a lei deve ser julgada a partir de suas finalidades éticas, e não apenas por uma questão da data de sua aprovação.
 O ministro Joaquim Barbosa, por exemplo, afirmou que o artigo 16 da Constituição tem o objetivo de “inibir manobras casuísticas, suscetíveis de interferir abruptamente na organização, no decorrer e no resultado dos pleitos eleitorais”. Para Barbosa, esse não é o espírito da Lei da Ficha Limpa.
 Mas para os ministros que votaram contra a aplicação imediata da lei, a interpretação de seus colegas sobre o conceito de processo eleitoral e a carência de um ano imposta pelo artigo 16 da Constituição está errada. Ao analisar o mesmo precedente do julgamento da Lei Complementar 64/90, o ministro Gilmar Mendes afirmou que a conclusão a que seus colegas chegaram “é equivocada”.
 De acordo com Gilmar Mendes, a Lei Complementar 64/90 instaurava um novo sistema normativo de inelegibilidades. O Supremo, então, decidiu que a norma não receberia a incidência do artigo 16 da Constituição “porque vinha de um mandamento constitucional inaugural”, Ou seja, preenchia lacunas em um sistema instituído pela nova ordem constitucional de 1988.
 “A Lei Complementar 64 viria cumprir um mandamento constitucional e preencher um vazio. Daí a dispensa da anterioridade, para permitir a moralização e a lisura do processo eleitoral então em curso”, afirmou Mendes. Segundo o ministro, negar eficácia à lei naquela ocasião deixaria uma lacuna que não era permitida pela própria Constituição.
 O quadro em relação à Lei da Ficha Limpa é completamente diferente. Já existia um sistema de inelegibilidades vigente há 20 anos, a partir do qual todos os candidatos se guiavam. Por isso é que a nova norma deveria respeitar o prazo de um ano para gerar eficácia. “Antes não se tratava de uma reforma ao texto. Agora há essa reforma”, sustentou Gilmar Mendes. A reforma consiste em alterar as regras do jogo. E para isso é necessário esperar um ano, por uma questão de segurança jurídica. “Não se pode utilizar esse precedente como norte”, afirmou Mendes.
 De acordo com o advogado eleitoral Rodrigo Lago, o próprio Supremo, em outros precedentes, já admitiu que a Lei Complementar 64 contemplava a nova redação constitucional que mandava considerar a vida pregressa dos candidatos para fins de inelegibilidade. Assim, a Lei da Ficha Limpa apenas ampliou a proteção já existente. Por isso, "o comando do artigo 16 da Constituição tem plena aplicação em relação às novas regras, que não podem ser aplicadas em 2010".
 Gilmar Mendes também fez um arrazoado sobre a jurisprudência da Corte no que diz respeito ao conceito de processo eleitoral, “que visa receber e transmitir a vontade do povo”. O ministro sustentou que o processo eleitoral se divide em três fases. A fase pré-eleitoral, que vai desde o registro, a escolha e a apresentação das candidaturas até a realização da propaganda eleitoral. A fase eleitoral propriamente dita, que compreende o início, a realização e o encerramento da votação. E a fase pós-eleitoral, que se inicia com a apuração e contagem de votos e finaliza com a diplomação dos candidatos.
 O ministro ressaltou que a regra do artigo 16 tem como objetivo impedir a deformação do processo eleitoral mediante alterações nele inseridas de forma casuística e que interfiram na igualdade de participação dos partidos políticos e seus candidatos. E que a jurisprudência do Supremo passou a identificar no artigo 16 uma garantia fundamental “do cidadão eleitor, do cidadão candidato e dos partidos políticos”.
 Ou seja, o prazo de um ano para que a alteração de regras eleitorais passe a valer é “garantia do cidadão, não apenas do eleitor, mas também dos candidatos e dos partidos políticos”. Segundo Mendes, o artigo 16, “segundo as premissas do próprio Supremo”, integra as cláusulas pétreas. “Não observar essa regra afronta os direitos individuais da segurança jurídica e do devido processo legal”, disse.
 Gilmar Mendes citou trecho de voto do ministro aposentado Sepúlveda Pertence, para quem “a anterioridade exigida pelo artigo 16 é essencial à aspiração de segurança e de isonomia que estão subjacentes à ideia qualificada de processo, como o do devido processo legal”. Para o ministro, essa perspectiva de análise, que leva em conta a restrição de direitos e garantias fundamentais, é mais objetiva do que aquela que segue na identificação subjetiva do casuísmo da alteração eleitoral.
 “A experiência, inclusive da jurisprudência do Supremo, demonstra que a identificação do casuísmo acaba por levar à distinção subjetiva entre casuísmos bons, ou não condenáveis, e casuísmos ruins, ou condenáveis, com o intuito de submeter apenas esses últimos à vedação da vigência imposta no artigo 16 da Constituição”, registrou Gilmar Mendes.
 Seus colegas Dias Toffoli, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso reforçaram suas ideias e firmaram que o quadro das inelegibilidades concerne ao campo específico dos abusos casuísticos que o artigo 16 da Constituição buscou erradicar. A divisão radical sobre o conceito do processo eleitoral, como anotou o presidente Cezar Peluso, fez com que o STF vivesse um dos maiores impasses de sua história.
 Caro Roriz
O recurso do ex-candidato ao governo do Distrito Federal foi envolto em polêmica antes mesmo de chegar ao Supremo Tribunal Federal. Depois do julgamento do TSE, os advogados do político entraram com reclamação na Corte Suprema afirmando que o descumprimento de prazos pelo tribunal eleitoral estava atrasando o julgamento da constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa.
 Os advogados Alberto Pavie Ribeiro, Emiliano Alves Aguiar e Pedro Gordilho, sustentavam que havia um “atraso injustificável” do tribunal eleitoral em cumprir os trâmites necessários para que o recurso de Francisco das Chagas, candidato a deputado estadual no Ceará e primeiro barrado pelo TSE, fosse remetido ao Supremo.
 Na ocasião, a presidência do TSE afirmou que “diante da relevância e da complexidade do tema, e também da inexistência de precedentes específicos sobre a LC 135/10”, o recurso estava sendo analisado cuidadosamente. O atraso fez com que caso Roriz, de maior apelo popular, fosse discutido primeiro pelos ministros do STF. Depois do empate no Supremo, Roriz renunciou e colocou para concorrer em seu lugar a mulher, Weslian.
 Nesta quarta-feira, os ânimos no Supremo devem se acirrar novamente no julgamento que decidirá se é possível ou não usar a base das discussões sobre o caso Roriz. Há expectativas sobre se os ministros discutirão também uma saída para o impasse. Os olhos se voltam para a ministra Ellen Gracie. Ela é a integrante do colegiado que se envolveu de forma menos apaixonada com o assunto. No julgamento em que o Supremo derrubou a verticalização, ela sustentara a inconstitucionalidade de lei eleitoral vigorar no mesmo ano de sua edição. Embora tenha decidido diferentemente agora, é a única que pode ceder no sentido de permitir o voto de desempate para o presidente, o que decidiria a questão imediatamente.

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